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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Saia de Maria Rita

Henry Alfred Bugalho

Na mesa de Jürgen havia uma foto dele em Porto de Galinhas. Mais novo. Só dezoito aninhos então e um porção de sonhos naquela mochila que carregou por todo o país.
Ficou fascinado, aprendeu a arranhar o violão e prometeu: um dia volto e abro uma pousada.
O que não aconteceu, evidentemente. Acabou a faculdade, foi contratado pela Siemens e a memória do Brasil ficou resguardada apenas nas fotografias e nas melodias que tirava no violão.
Isto até um colega o convidar para uma festa num galpão escondido em Kreuzberg.
Vai estar cheio de mulatas. Ele havia dito.
Como você sabe? Jürgen perguntou.
Mas é evidente. Uma festa de brasileiros.

Fato: tinha algumas mulatas, a maioria já casada com alemães. Haviam se conhecido no Brasil e eles as trouxeram para cá. Algumas deviam ser putas, sem sombra de dúvida. Não que Jürgen tivesse algum problema com isto. Havia se divertido pra caralho com os amigos da última vez que estiveram em Amsterdã. Havia conhecido algumas putas brasileiras lá também.
Os branquelos dançavam, sempre desengonçados, com as mulatas. Samba. Pagode. Funk. Cerveja alemã e caipirinha.
No meio da roda, dançava Maria Rita, girando como um pião, segurando com uma das mãos a barra da sua saia comprida.
Era a alma da festa. Solteira, nenhum alemão a tiracolo. Não tinha cara de puta. Pelo contrário, era trabalhadeira, acordando às cinco da manhã todos os dias. Camareira num hotel bacana. Para a grã-finada da Europa. De primeiros-ministros a presidentes.
Viste, era o Hollande? Uma colega portuguesa a cutucou enquanto passavam o aspirador no carpete daquele corredor interminável.
Quem? Maria Rita apertou a vista. Era meio míope, mas bem pouco.
O presidente da França!
Ah. Não conhecia.
Queria ter visto o Lula ou a Dilma, os que tiraram da miséria milhões de pessoas. Que lhe importava o presidente da França, que não lhe havia feito nada? Aliás, detestava franceses, com aquela sovaqueira da porra.

O olhar de Jürgen, quarenta anos e engenheiro da Siemens, se encontrou com o de Maria Rita, vinte e dois anos e camareira.
Ela procurava um alemão pamonha para chamar de seu (problemas de imigração, sabe como é?), e ele por uma mulata brasileira para chamar de sua (as alemãs são todas umas frígidas).
Se você acreditar em destino, dirá que foi isto. Prefiro pensar que foi um encontro de interesses.
Não transaram na primeira noite, pois Maria Rita era uma mulher que se dava o respeito, mas também porque Jürgen era meio lentão; talvez optasse por se chamar de um "homem respeitador".
Ela se mudou para a casa dele algumas semanas depois. Não havia sido convidada, simplesmente veio, mas Jürgen não se opôs. Mulher ordeira e carinhosa. Estavam felizes.
Queria que conhecesse meus pais. Maria Rita jogou a ideia uma noite, antes de irem dormir.
Jürgen varou a madrugada se revirando na cama. Ansiedade. Era um pedido sério, de compromisso, mas também tinha a empolgação de voltar para aquele lugar maravilhoso, uma explosão de vida e cores. O paraíso na terra.

Saíram da escuridão e da neve berlinense para o tórrido verão carioca.
Você se lembrou de passar filtro solar? Maria Rita perguntou a Jürgen.
É claro. Ele resmungou, mas mentia. Havia se esquecido e, no final do dia, já estava ardido e vermelho como um pimentão.
A família de Maria Rita o saudou como a um filho, beijando e abraçando, com seus corpos suados e grudentos. Feijoada, churrasco e futebol na TV.
E assim se passaram os primeiros dias.
Então, Maria Rita ficou calada e pensativa, sem aquela energia vital e contagiante tão característica dela.
O que foi? Alguma coisa errada? Jürgen perguntou.
Nada. Só bateu uma tristeza.
E ele entendia bem esta melancolia dela, também sentiria falta desta terra maravilhosa quando houvessem de partir de novo para a pátria fria e opaca onde nascera.
Mas não era isto que afligia Maria Rita. Antes fosse.

Numa noite, quando Jürgen e Maria Rita subiam o morro de braços dados após um lindo passeio por Copacabana, um grupo de rapazes os cercou numa quebrada, todos moleques de quinze ou dezesseis anos, alguns armados com pistolas e outros com fuzis.
Então apareceu o Zoião e agarrou Maria Rita pelos cabelos, enquanto os demais meteram uns chutes no cu do branquelo.
Voltou é, vagabunda? Que coragem, heim!
Deixa a gente em paz. Ela disse, chorando.
Nada disso, mulé. Cê tá pensando o quê? Aqui quem manda sou eu, porra, aqui eu sou a lei.
Maria Rita e Zoião haviam sido namorados alguns anos antes, mas quebravam demais o pau. Ele batia nela, e tudo o mais. Maria Rita fugiu (ou foi afugentada) para a Alemanha, enquanto Zoião cresceu e apareceu e se tornou o dono do morro. E ela torcendo para que ele já estivesse há muito morto, fuzilado pelo BOPE em alguma viela ou por alguma facção rival.
Este encontro só podia dar merda.
Jürgen nãn entendia palavra, mas não precisava ser nenhum gênio para compreender que sua vida estava por um fio. Maria Rita e Zoião gritavam. O cano do revólver em sua testa.
Vou morrer. Jürgen se recordou de sua viagem quase vinte anos antes, e de como tudo lhe pareceu incrível e deslumbrante, até mesmo as contradições e violências do país. Mas, agora, com as calças mijadas e todo trêmulo, só queria voltar para sua terra opaca.


Retirou a foto da sua escrivaninha e não tocava mais violão. De vez em quando, chorava sozinho no chuveiro sem nem saber bem por quê. Talvez fosse o medo, a proximidade da morte, a constatação de quão frágil era a sua existência, mas bem podia ser a recordação da mulata que deixou no Brasil nas mãos de um bandido assassino, que havia apostado o futuro e a felicidade dela para que ele pudesse estar ali, vivo, chorando no chuveiro. Era o sacrifício de Maria Rita que doía mais.
Era isto.

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