Conheceu a Nélida no salão de cabeleireiro. Fora fazer um
corte a máquina e a gerente, uma felliniana de quase 100 quilos, a convocou
para executar o serviço. Sentado na cadeira, observando-a através do espelho,
Ignácio sentiu o célebre desconforto machista em ser atendido por um travesti.
Suas mãos eram pesadas, mãos de homem, a despeito da tentativa de figura feminina que Nélida se
esforçava em representar. Não fosse o leve azular da barba e a voz artificialmente colocada, por mulher
passaria. Ele voltou para casa incomodado, mas reconhecendo que Nélida havia
caprichado no corte.
Na segunda vez, já estavam um
pouco mais íntimos e o desconforto diluíra. “Trabalha em quê?”, perguntou
Nélida enquanto manejava com maestria a máquina. “Professor de matemática”, foi
a lacônica resposta. Como estávamos na Quarta-feira de Cinzas, Ignácio ouviu,
atento e assombrado, o relato de Nélida para as outras cabeleireiras sobre suas
aventuras no Baile Gay fantasiada de Coelhinha da Playboy. Voltou para casa
curioso, imaginando Nélida dentro dos seus trajes carnavalescos.
Na terceira ida ao salão,
encontrou um negro forte sentado onde já considerava o seu lugar. A felliniana
chamou outra cabeleireira para dar um trato em sua cabeça semi- raspada e
Ignácio, disfarçando a contrariedade, ficou bisbilhotando os movimentos de
Nélida que, num frenesi entusiástico, esculpia na nuca do Apolo de Ébano a
palavra “Mengo”. Voltou para casa platonicamente enciumado.
Em sua quarta visita ao salão,
durante ritual do corte, Ignácio pediu Nélida em namoro. Foram juntos para a
casa do professor terem sua primeira noite de amor.
Passaram a dividir um quitinete
em Botafogo em companhia de um gato angorá chamado Oscar que interpretava o
papel de filho que nunca teriam. Viviam como marido e mulher, pois Ignácio não
a desejava como homem e tão pouco Nélida prestava-se ao papel ativo. Só um
detalhe atrapalhava a paz conjugal: os flácidos 13 centímetros de Nélida.
Ignácio tinha verdadeira ojeriza ao falo da amada, mal conseguia encará-lo.
Passaram muitas madrugadas de carinhos no escuro, com o membro de Nélida
ocultado pelo negrume do quarto enquanto o travesti recebia Ignácio de bruços,
escondendo a parte de sua anatomia embaraçosa ao seu amor.
Um dia, pousou nas mãos de Nélida
um livro de contos de José Saramago (1). Não era dada a leituras, mas
interessou-se pela história de um centauro caçado impiedosamente por um grupo
de humanos. Narrava Saramago que a criatura mitológica sempre tivera o desejo
de dormir deitado de costas, o que sua constituição, meio homem, meio equino, o
impedia de realizar. Encurralado, o centauro queda-se por um desfiladeiro e tem
seu corpo violentamente cortado ao meio por efeito de uma pedra pontiaguda. Em
seus últimos momentos de vida, a porção humana do centauro caído de costas experimenta
o prazer de sentir solo acariciando seus omoplatas. Emocionada, Nélida cerrou o
livro e tomou uma decisão.
Foram quase dois anos de espera,
mais seis meses de recuperação após a cirurgia. Dr. Euclides Pessoa, conhecido
nos meios cirúrgico-científicos como “O Pitanguy das Xoxotas”, fizera um
trabalho digno de figurar em qualquer galeria de arte, dada a perfeição em que
construíra a vagina de Nélida. Então, tal qual o Centauro de Saramago, o agora
ex-travesti provou da emoção única de, omoplatas roçando os lençóis, receber um
homem, seu homem, de frente pela primeira vez na vida e ambos, unidos e
extasiados, gozarem os prazeres que um prosaico papai-e-mamãe só àquele casal
poderia proporcionar.
(1) Objecto
Quase, de José Saramago. Editora Companhia das Letras, Ano: 1994.
1 comentários:
Excelente conto! Muito bom mesmo. Parabéns, escritor!
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