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segunda-feira, 20 de junho de 2016

A TRAVESSIA

Josefa sentiu a ponta da garrucha no lado esquerdo do rosto, ali onde acaba a sobrancelha.
Sonhou sonho, mas não: era jeito que despertava para a vida. Todo dia, antes do galo.

-  Levanta essa camisola e desce a calçola.

Zé João abriu-lhe as pernas sonolentas, dedilhou seus pelos como se espanasse alguma felpa
de roupa, separou os lábios inferiores rendidos, abrindo caminho úmido suficiente para entrar inteiro na terceira tentativa, sem que a mulher dissesse ái. Estava acostumada. Em cinco ou seis
movimentos crescentes, ele soltou um urro e desabou o corpanzil ofegante sobre a alma frágil
e resignada de Josefa. Não tardou, repetiu o que repetia todo amanhecer,
todo dia, antes do galo.

- Já fiz minha parte. Vê se trabalha direito e me dá menino macho. 

Doze meses se passaram, doze regras desceram.  Zé João acordou Josefa
com ponta da garrucha de sempre, ali onde acaba a sobrancelha. Dessa vez cansou de
lambança. E decretou.

- Vou te devolver pra velha da sua mãe. Não sou homem de pau de vento. 
Arruma suas trouxas.

Antes do galo, puxou a mulher fora do casebre e seguiu com ela até a margem do rio.
O sol fazia que nascia entre fiapos de nuvens, salpicando as águas escuras de
riscos prateados que mudavam de lugar a cada instante. Era só o que Josefa olhava.
Era só o que Josefa pensava: como o sol desenhava bonito no espelho do rio.
Zé João descalçou as botinas, enfiou os pés no brejo e buscou a canoa. Mandou a
mulher sentar na proa, que acomodou a trouxa entre as pernas vestidas de uma chita longa.
Abraçou a si mesma e cobriu-se como pode com a panaria. O vento ainda não soprava quentura
do sol que nascia e Josefa sentiu o gostoso balançar da canoa. Fechou olhos e ouvidos.

- Diz pra tal da velha que você não presta. Café ralo, carreteiro gosmento, 
chão empoeirado, panela encardida, boceta sem serventia. 

Durante a travessia, Josefa sonhou vida nova. As águas batendo no casco, o barulho das
remadas, o silêncio pantaneiro salpicado pelo canto longe das jaçanãs. Tudo piava esperança.
Muito nova -  pensava ela - para viver na tamanha tristeza. Não que voltar para a choça
da mãe tivesse lugar nos seus sonhos. Seria mais pesadelo de olho aberto.
Mas algo de novo, desconhecido, não largava dos miolos e coração. Só faltava um
tantinho de coragem.

- Vê se não atravessa o rio de volta. Mulher nova que não serve para parir, 
não serve pro meu viver.

Josefa fingiu que não ouviu. Só fingiu. Porque foi o sinal que a coragem mandou.
E de súbito, levantou-se na canoa, fazendo mexer os prumos de Zé João.

- Tá doida? Quer virar a canoa?
- Não. Quero virar a vida.

E pulou de trouxa e tudo no fundo da correnteza. Zé João se levantou de susto e
não fosse cabra bom de travessia teria caído também. Mas não. Ficou de pé, vasculhando
o rio.

- Diacho. Onde foi parar essa desgrama?

Nunca mais soube de Josefa. Nunca mais se soube de Josefa.
Diz o povaréu ribeirinho que ela vive nas profundezas, amasiada com a boiuna.
Diz que teve ninhada de serpentes, que até hoje atormentam os sonos de Zé João.
Diz que antes do galo o cabra acorda suado com uma delas enroscada no pescoço.
Diz que corre esbaforido, atormentado - e já encachaçado - para beira do brejo.
Diz que se ajeita na canoa varrendo o que a vista alcança a procura de nem sabe o quê.
Mas o rio jurou silêncio.






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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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