Pai;
O
senhor sabe o que é ter medo, medo de verdade? Eu sei. Durante boa parte de
minha vida, tive medo de que você me batesse, me castigasse ou não me
aprovasse. Tive medo de que seu amor me fosse negado, de que o senhor não me
protegesse do mundo, de que eu não pudesse mais viver sob seu teto. Tive medo
que você se envergonhasse de mim, se decepcionasse, ou desejasse ter dado a
vida a outro filho que não fosse eu.
Todavia,
de todos os medos que já senti na vida, pai, talvez o maior deles tenha sido o
de que você sofresse, não só através de mim ou de qualquer outra pessoa, mas
através da dor. Hospitais sempre me deram um medo abominável, mas, encontrá-lo
no leito de um deles me amedrontou ainda mais. As bolsas de soro, as seringas,
as enfermeiras sonâmbulas, a sonda que auxiliava em teu tratamento e que, mesmo
assim, me preenchia de receio e pavor... Medo! Medo! Medo! Eu tive tanto medo,
pai. Por ti. Por mim. Tanto medo.
Mas
eu não sou de subjugar-me facilmente... Ai, isto eu aprendi certamente contigo.
Não permiti que o medo me vencesse, me desarmasse. Então permanecemos nós dois
ali, o medo e eu, a velar teu inquieto sono enquanto eu descobria uma coisa boa
através do temor que eu senti por ti. O senhor é tão forte, pai. Não reclamou,
não gemeu, não chorou, mesmo com as marcas do processo cirúrgico tatuando os
lençóis com dor e sangue. Você foi tão corajoso que acabei por crescer dentro
de mim, inspirado em tua vontade de viver, em teu desejo de continuar neste
mundo tão feio, porque em teus olhos que não envelhecem, este é o mais belo dos
lugares, e é onde o senhor insiste em permanecer com tanto bom humor e
integridade.
Após
tua alta médica, sonhei com uma lembrança distante de minha infância. Estávamos
tu e eu na feira-livre, o senhor sempre com seu passo apressado e eu a esbarrar
nas pessoas, pequeno, magro, assustado com a ausência de tua mão que sempre
insistiu em nos deixar andar — meus irmãos e eu — com nossos próprios pés. De
repente, me perco. Olho para os lados, afoito, inquieto, ai o medo, ai o medo.
Então tenho a desesperada ideia de me por de gatinhas, arrisco-me a ser
pisoteado e então, para meu alívio, reconheço teus chinelos e teus tornozelos,
no meio de tantos pés que jamais me levariam até onde o senhor me levou. E eu
cheguei longe, pai. Cheguei exatamente aqui, onde não temo mais ter medo.
E
já não me interessa se sou um bom filho, se o senhor é um bom pai, se fizemos a
coisa certa, se nos entendemos ou se nos acostumamos. O que me importa é que
estamos juntos e que o tempo que nos resta é um acessório desnecessário à
manutenção de nossa amizade.
Pai.
Meu pai. Não tenha medo. Agora posso te chamar de filho.
(Texto
escrito depois de meu pai, João Morais, passar por um delicado processo
cirúrgico que foi seguido de algumas complicações pós-operatórias. Hoje, ele
está muito bem de saúde.)
Emerson
Braga
2 comentários:
Ah, meu amigo, que texto lindo! Comovente, emocionante, sua escrita leva o leitor às lágrimas. Parabéns, principalmente parabéns ao seu pai por esse maravilhoso ser humano que gerou e que tenho o orgulho de ter como amigo.
Se era pra fazer chorar, fez. Tantas implicações nessas linhas, tantas nuances apenas citadas, tanta coisa represadas, tanto afeto. E a vida se afunilando, se afunilando, mostrando o que é essencial. Belo texto.
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