Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Uma noite é sempre uma noite. Só uma noite




Devia fazer no máximo uns quarenta minutos que Chico estava ali, cochilando perto do posto central. Aquela noite parecia que ia ter pouca coisa pra fazer, e só mesmo o corriqueiro: bateria que precisava de uma carga, motor fervendo, pneu estourado, fora os malas que não põem gasolina e depois inventam a maior história, de medo de serem entregues pra polícia, porque agora ficar sem gasolina dá multa. Mas Chico nunca chamava a polícia. Percebia às primeiras palavras as mentiras e enrolações, sentia quase raiva de os homens não falarem logo a real, Acabou minha gasolina, esqueci de pôr, uma droga, fiz a maior burrada e coisa e tal. Mas mesmo assim não chamava a polícia, não queria aproximação com eles.
Só que Chico foi bobo de cochilar tão tranquilo, confiando no seu palpite do mais absoluto sossego noturno. Ele até pensou, terça-feira, mais de duas da manhã e nada sério, sinal de que vai ficar tudo bem. Mas não ia e ele devia saber. Basta se vangloriar que as piores merdas acontecem. Faz quase oito anos que tá nessa, já devia ter sacado. E sacou, na verdade. Mas seu otimismo era entranhado na carne, vinha pelo sangue, era da sua mãe, sabia disso.
O rádio devia estar chamando há algum tempo. A letra mais o número foram entrando no sono quase profundo em que ele entrava. G1 G1 G1 G1... Mas era código que quase sempre participava dos seus sonhos, muitas vezes de seus pesadelos também. O guincho da companhia era quase uma extensão da sua casa, e era dentro dele que dormia agora, meio esticado para o banco do passageiro, a perna direita apoiada em cima da esquerda, os pés descalços, a cabeça caída para a frente e a boca aberta para o ronco que sempre roncava. G1, G1, está ouvindo? G1! G1?! Dirija-se ao quilômetro 43 da Anchieta, G1! Agora!
Chico conseguiu sair da última barreira do sono e despertar por completo. Estava sendo mesmo chamado. Pegou o console do rádio e confirmou, estava ouvindo, sim, iria para lá. Era uma moto? Certo, iria agora mesmo. Raspou a mão nos olhos, tirando as ramelas que já tinham começado a se formar, enfiou os pés nos tênis e deu a partida, direto pra Anchieta. Tava ao lado, chegaria logo.
Nessas horas em que acordava no meio da noite, metia a mão no bolso de trás da calça à procura de cigarros, sempre. Só aí, o bolso vazio, é que lembrava tinha parado. O médico proibira. Era isso ou o enfisema, o pulmão já estava muito preto. Fazia dois anos e Chico já tinha se acostumado, mas toda vez que acordava sobressaltado nem pensava e buscava os cigarros. Priscila odiava cigarro, tinha ficado felicíssima de ele parar. Tinha ódio de beijar a boca amarga de fumo, era o que dizia. Mas agora fazia todo esse tempo e ela continuava não querendo muito saber de beijar. Fugia, dava desculpa, dizia pra ele se aliviar com as putas. Ele vinha segurando o corpo e nem gostava de pensar nisso, mas o pensamento ultimamente andava fixo. Ia fazer 47 anos. Não tinha tido um filho nessa vida ainda e não queria morrer sem ter pelo menos um. A Rosana não podia, ele aceitou, o corpo dela não conseguia segurar bebê nenhum, parece que era um problema genético, coisa complicada. Ficasse com ela ia ver o que fazia, mas depois o amor terminou, ele encontrou Priscila, se apaixonou, foi morar com ela e o filho que ela trazia, ainda pequeno. Tinha engravidado novinha e não queria mais saber de filho na vida. Ele gostava de Thiago, o moleque era gente boa, mas não era seu filho. Daqui a pouco Chico morria e nada.
Tinha que achar a porcaria da moto quebrada agora, o 43 já tava ali adiante e nem sinal de moto no acostamento, onde será que tinha se metido? Tinha que andar mais um pouco pra saber, vai ver ela tava detrás daquela árvore maior ali, precisava continuar. Mas não tinha nada. Onde será que tava a danada? Será que tinha resolvido o problema e ido embora sozinha? Encostou o guincho no acostamento pra pensar o que fazer. A luz que vinha dos faróis na pista contrária fazia a vista doer. Na madrugada era ruim dirigir, os olhos não deviam estar muito bons, mas não falava pra ninguém, se o demitissem nem sabia o que fazer da vida.
Ia pegar o rádio pra falar com a central quando veio o chamado. G1? Onde você está, G1? Quarenta e três da Anchieta, apressou-se a responder. Mas não tem moto nenhuma aqui. Da Anchieta? É 46 e da Imigrantes, caralho! Ademir não costumava soltar palavrões, mas a mancada de Chico tinha sido imensa. Porra, errar de rodovia, que merda tinha feito! Vai imediatamente pra lá, os outros carros tão atendendo outros chamados, vai agora, G1, corre! Chico nem tentou explicar, desculpar, nada. Ligou o motor e partiu.
E foi quando estava saindo do acostamento, com a frente já na pista, que viu do outro lado o que parecia a traseira de um carro apontando adiante, só a bundinha aparecendo, no meio das árvores. Que merda seria aquilo? Acelerou pra pegar o retorno, tinha que dar a volta pra ir pro outro lado, mas a visão daquele carro mergulhado incomodava. Esperou não vir carro na outra mão e se jogou, depois explicava pros chefes, tinha que ver aquilo logo, parecia uma grande, imensa grande merda. Estacionou o guincho e ligou o pisca-alerta, sinalizando.
Desceu do carro e a mão escorregou, suada, na hora de bater a porta. Não se considerava medroso, isso não, mas não fazia nem um mês da morte da moça e ainda via a cara branca dela, dura, os lábios roxos, a parte direita toda esmagada e preta de sangue, e o desespero do marido, apoiando a cabeça dela no colo, gritando por ajuda, para que salvassem a mulher dele, pelo amor de Deus. O grito que ele deu foi horrendo e atravessou as matas. Não era nem uma coisa articulada, mas nem precisava. Era a angústia pura de um homem que queria salvar a mulher e não percebia que também ele morria. Isso é que Chico não se conformava. A visão da moça era horrível, mas ele já tinha visto muita gente morta nas estradas. As pessoas pediam pra ele fazer alguma coisa, socorrer os feridos, ajudar, mas ele não podia, não era médico, nem enfermeiro. Era só o motorista do guincho da companhia. O que não saía da sua cabeça era o pânico do homem e o absurdo de ele estar morrendo e não se dar conta. O sangue nas pernas e no peito pareciam ser da moça, mas ele também sangrava, parece que uma das artérias importantes tinha estourado, foi o que ouviu depois, e ele perdia sangue numa velocidade odiosa. Morreu no caminho do hospital.
E era por essa visão que Chico caminhava devagar agora, a lanterna apontada pro chão, demorando a jogar a luz pro carro, o medo do que ia ver desta vez. O coração quase engasgava, mas ele não podia ser tão covarde assim. Respirou um pouco mais fundo com a boca aberta e jogou o jato de luz na direção do carro que parecia balançar entre a estrada e o morro. Estava vazio. Os vidros estavam quebrados e as portas fechadas. As pessoas deviam ter saído pela janela, na melhor das hipóteses.
Começou a gritar, a voz um pouco baixa no início, depois mais e mais confiante, solta, Ei, tem alguém aí? Era estúpido falar isso, mas que outra pergunta ia fazer? Foi entrando na mata, fria e silenciosa, girando a lanterna pra todo lado e descendo, a terra escorregadia e úmida do sereno, amortecendo os barulhos dos passos de sua bota amarelo-fosforescente. Continuava gritando e ninguém respondia. Ouvia só o chiado vindo do seu rádio, no guincho, deviam estar chamando, mas agora não podia interromper sua busca. Aquele carro estava abandonado? Teriam fugido? Ou socorridos? Só se fosse por alguém da região, algum morador dali por perto, se é que tinha, porque se fosse a companhia teriam botado fitas isolantes, faziam um auê.
Entrou mais na mata. Pareceu ouvir um barulho, ainda baixinho, era um choro? O casal que morreu tinha deixado um bebezinho de apenas dois anos. Não tinha acontecido nada com ele, só um arranhãozinho na testa, de nada. O carro, em compensação, só faltou partir ao meio. A família nem veio buscar. Tava lá ainda, no pátio da polícia, até agora. Coisa ruim dessas, pra que iam querer o carro de recordação? Agora deviam estar vendo como iam cuidar do bebê, levar a vida pra frente depois da tragédia. A caminhonete que bateu no carro deles não foi pega até hoje, a filha da puta fugiu depois de bater e mesmo com as câmeras não conseguiram achar ainda, a assassina. O que mais tinha medo de encontrar era criança. E era choro sim, o que ouvia. Que não fosse de uma menininha, pediu rápido.
Por sorte não era, mas também não era muito melhor. Havia sangue por quase todo o corpo branco. Ela estava de costas, chorava e se batia com as mãos. Conforme Chico se aproximava começou a entender algumas palavras do que ela murmurava. A moça pedia para morrer, meu Deus do céu! Não era só com as mãos que ela se batia. Tinha uma pedra grande na mão direita e fazia uma força enorme para chocar a pedra contra a cabeça, num lugar que parecia estar ferido. A iluminação ali era só da lua e dos ecos da lanterna que Chico direcionava pro chão. Se lançasse o jato na cara da mulher tinha a impressão que ela podia atacá-lo, jogar a pedra por cima dele, ou fazer algo ainda pior, com ela mesma. Não tinha visto seu rosto ainda, mas de costas a cena era de alguém em transe, parecia até tomada por algo, credo!
Lançou a lanterna, agora apagada, ao chão, e enquanto se aproximava passo a passo ia pensando no que fazer. Caminhava segurando deliberadamente o ritmo dos passos, embora soubesse que era óbvio que ela tinha já notado a presença dele. Havia a luz piscante do guincho, os gritos que havia dado, o ruído baixo mas ainda audível do rádio. Mesmo assim ela prosseguia como se nada, como se não houvesse plateia, ou então será que caprichava mais agora que tinha plateia? Chico tinha que ser cuidadoso, mas também agir rápido. Desse jeito ela ainda acabava conseguindo o que queria.
Quando estava a poucos passos dos cabelos emplastrados de sangue da moça cujo braço continuava a se esforçar e a se atingir, chamou baixinho, buscando a doçura de quem fala com criança, Moça, ô moça, não faz isso! Olha, o mais importante é que a senhora tá viva, moça! Deixa disso! Eu tô aqui pra ajudar a senhora, vai ficar tudo bem! Quando ele falou ela finalmente resolveu notá-lo. Virou-se de frente pra ele, a pedra ainda na mão esquerda e um caco retorcido na direita, que fazia lentos rabiscos nos seios descobertos, a blusa florida rasgada, os trapos caíam-lhe nos braços. Eu quero morrer, olha o que eu fiz! Eu tenho que morrer, eu tenho que morrer, oh, meu Deus!
Chico não sabia se ela se referia ao carro batido ou aos machucados que se desferia, mas não importava, era preciso pará-la, deixá-la calma, e ele só conseguia falar a banalidade, verdadeira porém, que era que o valia era ela estar viva, o carro era só um carro, era um milagre ela estar viva. Mas essas coisas só adiantam pra pessoas mais normais, e a moça talvez não fosse tanto assim. Dava pra ver que sofria muito, devia ter problemas sérios, vai ver era atormentada por um marido severo que não a perdoaria pelo ocorrido, talvez fosse bater nela, talvez fosse ele a tentar dar cabo da vida dela, vai saber. Isso vinha na sua cabeça, mas na verdade não importava. Ele tinha que tirar aquelas coisas das mãos da moça. Permaneceu se aproximando, mas ela passou a gritar pra ele se afastar, levantando a pedra de novo e dando-lhe as costas. Quando achou que ela iria acertá-lo, ela se ajoelhou no chão, largando pedra e vidro e enfiando a cabeça na terra, num choro infantil que parecia conter uma tristeza gigante como Chico nunca tinha visto.
Chico não era um homem delicado. Quando Priscila chorava, ele até mandava calar a boca, sabia que era frescura. Mas aquela mulher sofria de verdade, por isso ele se ajoelhou atrás dela e bem devagar a abraçou, confortando-a como uma criança e deixando ela deitar a cabeça no seu ombro e chorar, o nariz escorrendo, o sangue dela avermelhando o uniforme cinza de Chico e os dedos dele tomando cuidado pra não encostarem nos mamilos descobertos dela. Quando se lembrou disso percebeu que não poderia contar pra ninguém essa parte da história, seus amigos jamais acreditariam e nem ele mesmo acreditaria, mas aquela era uma hora sagrada. Chico sabia, tinha sido enviado ali para salvar aquela dona.
Depois que ela chorou muito, no início ainda repetindo umas palavras confusas, que queria morrer, queria morrer de todo jeito, depois em silêncio, o choro cada vez mais pra dentro, Chico falou que ia pedir ajuda e se levantou, com movimentos leves, recostando-a no chão. Só então ela olhou no rosto dele e falou a primeira coisa que parecia voltada pra ele, que não era apenas reclamação e lamúria pra dentro. Você tem um cigarro pra me dar? Ah, se ele tivesse, se ele tivesse, dava tudo pra ter um cigarro para ela, mas não tinha e não ia adiantar explicar que tinha parado, o pulmão preto, a boca fedida, as roupas fedidas, nada. Eu não fumo, é pena, falou apenas, e saiu correu pro guincho, de costas, porque tinha muito medo de ela fazer alguma nova merda, e então acionou a central. Em menos de dez minutos a ambulância estava ali e a levaram dele, sem que ele soubesse seu nome. Ela ainda pediu que fosse ao pronto-socorro acompanhá-la, estava viva só por ele, mas isso fugia de qualquer norma e ele não podia arriscar o emprego. Passou apenas os dedos, de leve, nas mãos machucadas dela, olhando-a com calma e dizendo que ela ficaria bem.
Ela sobreviveu, foi tudo o que soube depois. Será que tentaria se matar outra vez? Como será que tinha enfiado o carro no mato daquele jeito? Perdera o controle na curva? Por que não aceitava o que tinha feito e ficava repetindo Eu sou toda errada, toda errada, toda errada? Ela parecia bonita, a moça. Devia ter uns trinta anos, era um pouco mais nova que Priscila.
Passou a incluí-la nas suas orações noturnas. Pedia que ele persistisse mais um pouco no seu projeto de família, a ideia de ficar casando e descasando não lhe agradava, dava muito trabalho, gastava tempo e depois nunca levava a nada. Tinha trocado Rosana por Priscila e os impasses e questões eram todos parecidos. Ah, que Priscila voltasse a trepar toda noite e topasse o filho, era tudo que ele queria, logo. E que a moça da estrada, minha Nossa Senhora, que ela fique boa, não sofra mais, nunca mais. Porque se ela aparecer de novo no caminho, não dá pra garantir que não pego ela pra mim.

Mulher bonita não pode nunca sofrer.  

Share




0 comentários:

Postar um comentário