Devia
fazer no máximo uns quarenta minutos que Chico estava ali, cochilando perto do
posto central. Aquela noite parecia que ia ter pouca coisa pra fazer, e só
mesmo o corriqueiro: bateria que precisava de uma carga, motor fervendo, pneu
estourado, fora os malas que não põem gasolina e depois inventam a maior
história, de medo de serem entregues pra polícia, porque agora ficar sem
gasolina dá multa. Mas Chico nunca chamava a polícia. Percebia às primeiras
palavras as mentiras e enrolações, sentia quase raiva de os homens não falarem
logo a real, Acabou minha gasolina, esqueci de pôr, uma droga, fiz a maior
burrada e coisa e tal. Mas mesmo assim não chamava a polícia, não queria aproximação
com eles.
Só
que Chico foi bobo de cochilar tão tranquilo, confiando no seu palpite do mais
absoluto sossego noturno. Ele até pensou, terça-feira, mais de duas da manhã e nada
sério, sinal de que vai ficar tudo bem. Mas não ia e ele devia saber. Basta se
vangloriar que as piores merdas acontecem. Faz quase oito anos que tá nessa, já
devia ter sacado. E sacou, na verdade. Mas seu otimismo era entranhado na
carne, vinha pelo sangue, era da sua mãe, sabia disso.
O
rádio devia estar chamando há algum tempo. A letra mais o número foram entrando
no sono quase profundo em que ele entrava. G1 G1 G1 G1... Mas era código que
quase sempre participava dos seus sonhos, muitas vezes de seus pesadelos
também. O guincho da companhia era quase uma extensão da sua casa, e era dentro
dele que dormia agora, meio esticado para o banco do passageiro, a perna
direita apoiada em cima da esquerda, os pés descalços, a cabeça caída para a
frente e a boca aberta para o ronco que sempre roncava. G1, G1, está ouvindo?
G1! G1?! Dirija-se ao quilômetro 43 da Anchieta, G1! Agora!
Chico
conseguiu sair da última barreira do sono e despertar por completo. Estava
sendo mesmo chamado. Pegou o console do rádio e confirmou, estava ouvindo, sim,
iria para lá. Era uma moto? Certo, iria agora mesmo. Raspou a mão nos olhos,
tirando as ramelas que já tinham começado a se formar, enfiou os pés nos tênis e
deu a partida, direto pra Anchieta. Tava ao lado, chegaria logo.
Nessas
horas em que acordava no meio da noite, metia a mão no bolso de trás da calça à
procura de cigarros, sempre. Só aí, o bolso vazio, é que lembrava tinha parado.
O médico proibira. Era isso ou o enfisema, o pulmão já estava muito preto.
Fazia dois anos e Chico já tinha se acostumado, mas toda vez que acordava
sobressaltado nem pensava e buscava os cigarros. Priscila odiava cigarro, tinha
ficado felicíssima de ele parar. Tinha ódio de beijar a boca amarga de fumo,
era o que dizia. Mas agora fazia todo esse tempo e ela continuava não querendo
muito saber de beijar. Fugia, dava desculpa, dizia pra ele se aliviar com as
putas. Ele vinha segurando o corpo e nem gostava de pensar nisso, mas o
pensamento ultimamente andava fixo. Ia fazer 47 anos. Não tinha tido um filho
nessa vida ainda e não queria morrer sem ter pelo menos um. A Rosana não podia,
ele aceitou, o corpo dela não conseguia segurar bebê nenhum, parece que era um
problema genético, coisa complicada. Ficasse com ela ia ver o que fazia, mas
depois o amor terminou, ele encontrou Priscila, se apaixonou, foi morar com ela
e o filho que ela trazia, ainda pequeno. Tinha engravidado novinha e não queria
mais saber de filho na vida. Ele gostava de Thiago, o moleque era gente boa,
mas não era seu filho. Daqui a pouco Chico morria e nada.
Tinha
que achar a porcaria da moto quebrada agora, o 43 já tava ali adiante e nem
sinal de moto no acostamento, onde será que tinha se metido? Tinha que andar
mais um pouco pra saber, vai ver ela tava detrás daquela árvore maior ali,
precisava continuar. Mas não tinha nada. Onde será que tava a danada? Será que
tinha resolvido o problema e ido embora sozinha? Encostou o guincho no
acostamento pra pensar o que fazer. A luz que vinha dos faróis na pista
contrária fazia a vista doer. Na madrugada era ruim dirigir, os olhos não
deviam estar muito bons, mas não falava pra ninguém, se o demitissem nem sabia
o que fazer da vida.
Ia
pegar o rádio pra falar com a central quando veio o chamado. G1? Onde você está,
G1? Quarenta e três da Anchieta, apressou-se a responder. Mas não tem moto
nenhuma aqui. Da Anchieta? É 46 e da Imigrantes, caralho! Ademir não costumava
soltar palavrões, mas a mancada de Chico tinha sido imensa. Porra, errar de rodovia,
que merda tinha feito! Vai imediatamente pra lá, os outros carros tão atendendo
outros chamados, vai agora, G1, corre! Chico nem tentou explicar, desculpar,
nada. Ligou o motor e partiu.
E
foi quando estava saindo do acostamento, com a frente já na pista, que viu do
outro lado o que parecia a traseira de um carro apontando adiante, só a
bundinha aparecendo, no meio das árvores. Que merda seria aquilo? Acelerou pra
pegar o retorno, tinha que dar a volta pra ir pro outro lado, mas a visão
daquele carro mergulhado incomodava. Esperou não vir carro na outra mão e se
jogou, depois explicava pros chefes, tinha que ver aquilo logo, parecia uma
grande, imensa grande merda. Estacionou o guincho e ligou o pisca-alerta,
sinalizando.
Desceu
do carro e a mão escorregou, suada, na hora de bater a porta. Não se
considerava medroso, isso não, mas não fazia nem um mês da morte da moça e
ainda via a cara branca dela, dura, os lábios roxos, a parte direita toda
esmagada e preta de sangue, e o desespero do marido, apoiando a cabeça dela no
colo, gritando por ajuda, para que salvassem a mulher dele, pelo amor de Deus.
O grito que ele deu foi horrendo e atravessou as matas. Não era nem uma coisa
articulada, mas nem precisava. Era a angústia pura de um homem que queria
salvar a mulher e não percebia que também ele morria. Isso é que Chico não se
conformava. A visão da moça era horrível, mas ele já tinha visto muita gente
morta nas estradas. As pessoas pediam pra ele fazer alguma coisa, socorrer os
feridos, ajudar, mas ele não podia, não era médico, nem enfermeiro. Era só o motorista
do guincho da companhia. O que não saía da sua cabeça era o pânico do homem e o
absurdo de ele estar morrendo e não se dar conta. O sangue nas pernas e no
peito pareciam ser da moça, mas ele também sangrava, parece que uma das
artérias importantes tinha estourado, foi o que ouviu depois, e ele perdia
sangue numa velocidade odiosa. Morreu no caminho do hospital.
E
era por essa visão que Chico caminhava devagar agora, a lanterna apontada pro
chão, demorando a jogar a luz pro carro, o medo do que ia ver desta vez. O
coração quase engasgava, mas ele não podia ser tão covarde assim. Respirou um
pouco mais fundo com a boca aberta e jogou o jato de luz na direção do carro
que parecia balançar entre a estrada e o morro. Estava vazio. Os vidros estavam
quebrados e as portas fechadas. As pessoas deviam ter saído pela janela, na
melhor das hipóteses.
Começou
a gritar, a voz um pouco baixa no início, depois mais e mais confiante, solta,
Ei, tem alguém aí? Era estúpido falar isso, mas que outra pergunta ia fazer?
Foi entrando na mata, fria e silenciosa, girando a lanterna pra todo lado e descendo,
a terra escorregadia e úmida do sereno, amortecendo os barulhos dos passos de sua
bota amarelo-fosforescente. Continuava gritando e ninguém respondia. Ouvia só o
chiado vindo do seu rádio, no guincho, deviam estar chamando, mas agora não podia
interromper sua busca. Aquele carro estava abandonado? Teriam fugido? Ou socorridos?
Só se fosse por alguém da região, algum morador dali por perto, se é que tinha,
porque se fosse a companhia teriam botado fitas isolantes, faziam um auê.
Entrou
mais na mata. Pareceu ouvir um barulho, ainda baixinho, era um choro? O casal
que morreu tinha deixado um bebezinho de apenas dois anos. Não tinha acontecido
nada com ele, só um arranhãozinho na testa, de nada. O carro, em compensação,
só faltou partir ao meio. A família nem veio buscar. Tava lá ainda, no pátio da
polícia, até agora. Coisa ruim dessas, pra que iam querer o carro de recordação?
Agora deviam estar vendo como iam cuidar do bebê, levar a vida pra frente
depois da tragédia. A caminhonete que bateu no carro deles não foi pega até
hoje, a filha da puta fugiu depois de bater e mesmo com as câmeras não
conseguiram achar ainda, a assassina. O que mais tinha medo de encontrar era
criança. E era choro sim, o que ouvia. Que não fosse de uma menininha, pediu
rápido.
Por
sorte não era, mas também não era muito melhor. Havia sangue por quase todo o
corpo branco. Ela estava de costas, chorava e se batia com as mãos. Conforme
Chico se aproximava começou a entender algumas palavras do que ela murmurava. A
moça pedia para morrer, meu Deus do céu! Não era só com as mãos que ela se batia.
Tinha uma pedra grande na mão direita e fazia uma força enorme para chocar a
pedra contra a cabeça, num lugar que parecia estar ferido. A iluminação ali era
só da lua e dos ecos da lanterna que Chico direcionava pro chão. Se lançasse o
jato na cara da mulher tinha a impressão que ela podia atacá-lo, jogar a pedra
por cima dele, ou fazer algo ainda pior, com ela mesma. Não tinha visto seu
rosto ainda, mas de costas a cena era de alguém em transe, parecia até tomada
por algo, credo!
Lançou
a lanterna, agora apagada, ao chão, e enquanto se aproximava passo a passo ia
pensando no que fazer. Caminhava segurando deliberadamente o ritmo dos passos,
embora soubesse que era óbvio que ela tinha já notado a presença dele. Havia a
luz piscante do guincho, os gritos que havia dado, o ruído baixo mas ainda
audível do rádio. Mesmo assim ela prosseguia como se nada, como se não houvesse
plateia, ou então será que caprichava mais agora que tinha plateia? Chico tinha
que ser cuidadoso, mas também agir rápido. Desse jeito ela ainda acabava
conseguindo o que queria.
Quando
estava a poucos passos dos cabelos emplastrados de sangue da moça cujo braço
continuava a se esforçar e a se atingir, chamou baixinho, buscando a doçura de
quem fala com criança, Moça, ô moça, não faz isso! Olha, o mais importante é
que a senhora tá viva, moça! Deixa disso! Eu tô aqui pra ajudar a senhora, vai
ficar tudo bem! Quando ele falou ela finalmente resolveu notá-lo. Virou-se de frente
pra ele, a pedra ainda na mão esquerda e um caco retorcido na direita, que fazia
lentos rabiscos nos seios descobertos, a blusa florida rasgada, os trapos
caíam-lhe nos braços. Eu quero morrer, olha o que eu fiz! Eu tenho que morrer,
eu tenho que morrer, oh, meu Deus!
Chico
não sabia se ela se referia ao carro batido ou aos machucados que se desferia,
mas não importava, era preciso pará-la, deixá-la calma, e ele só conseguia
falar a banalidade, verdadeira porém, que era que o valia era ela estar viva, o
carro era só um carro, era um milagre ela estar viva. Mas essas coisas só
adiantam pra pessoas mais normais, e a moça talvez não fosse tanto assim. Dava
pra ver que sofria muito, devia ter problemas sérios, vai ver era atormentada
por um marido severo que não a perdoaria pelo ocorrido, talvez fosse bater
nela, talvez fosse ele a tentar dar cabo da vida dela, vai saber. Isso vinha na
sua cabeça, mas na verdade não importava. Ele tinha que tirar aquelas coisas
das mãos da moça. Permaneceu se aproximando, mas ela passou a gritar pra ele se
afastar, levantando a pedra de novo e dando-lhe as costas. Quando achou que ela
iria acertá-lo, ela se ajoelhou no chão, largando pedra e vidro e enfiando a
cabeça na terra, num choro infantil que parecia conter uma tristeza gigante
como Chico nunca tinha visto.
Chico
não era um homem delicado. Quando Priscila chorava, ele até mandava calar a
boca, sabia que era frescura. Mas aquela mulher sofria de verdade, por isso ele
se ajoelhou atrás dela e bem devagar a abraçou, confortando-a como uma criança e
deixando ela deitar a cabeça no seu ombro e chorar, o nariz escorrendo, o
sangue dela avermelhando o uniforme cinza de Chico e os dedos dele tomando
cuidado pra não encostarem nos mamilos descobertos dela. Quando se lembrou
disso percebeu que não poderia contar pra ninguém essa parte da história, seus
amigos jamais acreditariam e nem ele mesmo acreditaria, mas aquela era uma hora
sagrada. Chico sabia, tinha sido enviado ali para salvar aquela dona.
Depois
que ela chorou muito, no início ainda repetindo umas palavras confusas, que
queria morrer, queria morrer de todo jeito, depois em silêncio, o choro cada
vez mais pra dentro, Chico falou que ia pedir ajuda e se levantou, com
movimentos leves, recostando-a no chão. Só então ela olhou no rosto dele e
falou a primeira coisa que parecia voltada pra ele, que não era apenas reclamação
e lamúria pra dentro. Você tem um cigarro pra me dar? Ah, se ele tivesse, se
ele tivesse, dava tudo pra ter um cigarro para ela, mas não tinha e não ia
adiantar explicar que tinha parado, o pulmão preto, a boca fedida, as roupas
fedidas, nada. Eu não fumo, é pena, falou apenas, e saiu correu pro guincho, de
costas, porque tinha muito medo de ela fazer alguma nova merda, e então acionou
a central. Em menos de dez minutos a ambulância estava ali e a levaram dele,
sem que ele soubesse seu nome. Ela ainda pediu que fosse ao pronto-socorro acompanhá-la,
estava viva só por ele, mas isso fugia de qualquer norma e ele não podia
arriscar o emprego. Passou apenas os dedos, de leve, nas mãos machucadas dela,
olhando-a com calma e dizendo que ela ficaria bem.
Ela
sobreviveu, foi tudo o que soube depois. Será que tentaria se matar outra vez?
Como será que tinha enfiado o carro no mato daquele jeito? Perdera o controle
na curva? Por que não aceitava o que tinha feito e ficava repetindo Eu sou toda
errada, toda errada, toda errada? Ela parecia bonita, a moça. Devia ter uns
trinta anos, era um pouco mais nova que Priscila.
Passou
a incluí-la nas suas orações noturnas. Pedia que ele persistisse mais um pouco
no seu projeto de família, a ideia de ficar casando e descasando não lhe
agradava, dava muito trabalho, gastava tempo e depois nunca levava a nada. Tinha
trocado Rosana por Priscila e os impasses e questões eram todos parecidos. Ah, que
Priscila voltasse a trepar toda noite e topasse o filho, era tudo que ele
queria, logo. E que a moça da estrada, minha Nossa Senhora, que ela fique boa,
não sofra mais, nunca mais. Porque se ela aparecer de novo no caminho, não dá
pra garantir que não pego ela pra mim.
Mulher
bonita não pode nunca sofrer.
0 comentários:
Postar um comentário