O pai de Margarida a tentar alcançar
o barco e o barco a afastar-se.
O barco virado e o mastro
desfeito na areia, era já a mãe de Margarida correndo pés de medo pela praia.
Os pés da mãe de Margarida
mais corridos do que quando iam buscar a água que se despenhava da falésia, ou
quando brincavam pela areia, ou nas rochas, nas pocinhas de água que o mar
fazia nelas.
A mãe de Margarida que, com
mãos trémulas de comoção e mágoa, acenderia velas aos pés da Virgem agradecendo, e o mar a deixar na areia, um em cada dia, os haveres: o pão
desfeito na bolsa de quadrados, e a camisa, e o relógio tal e qual como o pai
de Margarida o deixara na algibeira que ficava do lado direito.
O mar a lamber a areia e a
deixar cada peça como se fosse prenda. Como se fossem desculpas que o mar apresentasse
pelo imenso susto.
O barco tinha ficado mal
atracado. Nada mais que uma pedra jogada ao fundo, e um pedaço de corda amarrado
à proa do barquito.
Prendo-o melhor depois do
almoço, tinha dito o pai de Margarida.
O barco indo num levante que
veio com a praia-mar.
A mãe de Margarida disse: o
barco desprendeu-se. E o pai de Margarida foi apanhar o barco nadando braçadas impossíveis, e o barco já longe, e nem forças
para remar, que mal as teve para subir o calado do que nem era mais que um bote.
Pelos cimos da falésia, os
pastores, olhando o homem e olhando o barco, descuidavam os rebanhos.
O sueste a lamber a areia
de uma praia, logo adiante daquela onde a mãe de Margarida ficara rezando, e lá
no alto da arriba os pastores prevendo: a onda vai virar o barco e o homem
morre.
A mãe de Margarida a rezar
tanto, e o barco levado para outra areia, e o barco virado pela onda. Tinham
previsto os pastores que, a passarem palavra de uns aos outros, vieram dizer à
mãe de Margarida que o seu homem estava salvo, que tinha saltado para a água antes
que o barco caísse sobre o mastro que se desfez em pedaços.
Deve ser de quando Margarida
se lembra de ver a mãe correndo pelo areal, e nem ela terá percebido que a mãe
corria pés de medo. Que nem terá sido logo, logo, que Margarida se confrontou
com o mistério da vida e da morte. Mas terá sido naquele dia de
ser o barco indo, que Margarida percebeu o poder imenso de benzer-se como ela
veria as mulheres: em momentos em que falavam
de ter morrido, ou de ter adoecido, ou de ter nascido, ou por um isto ou aquilo
que lhes fosse desmedido, levavam os dedos da mão direita muito unidos até à
testa e, a seguir, até quase ao ventre e, num gesto sempre muito sacudido,
uniam um ao outro cada um dos ombros.
Mas quando a mãe lhe disser: ajoelha-te, filha, a fazer uma reza, Margarida,
a sentir o frio da pedra, puxará as saias a proteger os joelhos, e ficará
dobradinha, enrolada numa devoção que, ainda não sabe, os céus nunca irão
conceder-lhe.
O pai de Margarida quase
morto naquele mar que era tão pachorrento. Um mar que raramente
dava em ondas de levante e, à noite, uma lua gorda vinha, como um farol,
varrer-lhe o imenso negro.
Quando a maré vazava,
ficavam as rochas com seus poros dilatados onde a água era tal e qual um
espelho. E as cores. Os verdes, os lilases, os azuis. Miríades de tonalidades
nas covinhas que o mar deixava ao arredar-se para longe. Outros mundos que Margarida
nem ainda sonhava.
E as algas como bichos na
areia, como colchas.
Como mantas, dizia a mãe de
Margarida.
O odor do iodo confundia-se
com a névoa ao fim das tardes e, pelas noites, as estrelas
vinham banhar-se: nuas, despegavam-se da abóbada celeste em mergulhos
acrobáticos, e Margarida batia palmas a sugar sentidos nas pedrinhas encharcadas em água
salgada.
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