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quarta-feira, 25 de maio de 2016

O crítico de Arte


 “Vou a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de Arte.
Carina é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para terem feito uma qualquer licenciatura e encetado uma carreira profissional, e suficientemente inseguras por não terem definido um rumo para a sua vida, quer por indecisões próprias, quer pelas circunstâncias. Um namorado que nunca mais ganha vontade de assentar não ajuda. Um dia, a impaciência suplanta a compreensão e o namorado desaparece ou é corrido, como sucedeu com o de Carina. A partir de então, ela vive nesse limbo que tem tanto de espera angustiada como de gosto reganhado de uma liberdade cada vez mais assumida e fruída. 
Tem um pequeno grupo de amigas, também de trinta e pouco anos, que convida à vez para ir ao cinema, às compras ou a eventos culturais, conforme a propensão prevalente. Talvez por tê-la convidado em cima da hora, a amiga Sónia declinou o convite “com pena”, pelo que Carina resolveu-se a ir sozinha à palestra na Culturgest. Foi cedo, diretamente do escritório, e sentou-se na terceira fila. A primeira estava reservada para convidados e os emproados gostam de se sentar logo a seguir.
Como esperava, Delvaux fê-la aperceber-se de aspetos em que nunca tinha pensado no campo da Arte. Aliás, perguntou-se, como teria sido possível discorrer por si própria, — ela que, embora adorando Arte, vinha de Direito —, que um colecionador é, em geral, tomado — na sua obsessão de juntar objetos belos e de valor —, por uma atitude mental de carência, de reminiscência de períodos em que queria ter mais objetos e não pôde, em que queria afagos e não os teve, de uma baixa autoestima, em suma? Ou que é possível detetar falsas pinturas renascentistas só pela análise dos anéis da madeira em que foi pintada? Além disso, a figura do crítico impunha-se não só pela assertividade das declarações, mas também pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final — “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica a nossa vontade de divino” — resumia muito do que fora dito.
Quando terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele, embora só tivesse admitido que devia agraciá-lo com umas palavras pessoais de apreço, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de agradecimento, porque se juntaram várias à volta do palestrante. Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre, que lhe fez um sinal para avançar. A proximidade fê-la temer algum titubeamento, mas a segurança de Delvaux transmitiu-lhe calma. Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras que não tinha preparado, mas que transmitiam bastante do que sentia:
Professor, adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados e senti-me num estado de graça tal, como quando ouço As Quatro Estações de Vivaldi.
Pensou ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também uma curiosidade alienígena. Fixaram-na por um momento, enquanto, impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar.
Apetece-lhe um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não deixava lugar a escusas.
Carina assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o convite excedia em muito as palavras pronunciadas.
Quando Delvaux conseguiu livrar-se do resto do envolvimento festivo da palestra, sentaram-se no pequeno bar da Fundação, mas ainda interrompidos esporadicamente por admiradores retardatários. Tanto por essa falta de sossego na conversa, como pela curiosidade que Carina manifestou pela pintura de Delvaux, de que ela não desconfiava, combinaram um encontro para a semana seguinte no ateliê do crítico.
Agitada, ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O resto se veria.
O Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir esconder uma ponta de inveja.
Sabes o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar.
Estás muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele!
Sónia, ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do telemóvel.
Passados uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina. Entre uma semi-humilhação de ser ela a procurar Delvaux e a irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu-se a procurar o crítico e a fazer-lhe notar a indelicadeza, difícil de perceber num homem impecavelmente atencioso. “Talvez esteja doente”, pensou, desejando que “antes isso”. Descobrir a morada do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas em páginas de Facebook deram-lhe umas pistas das horas em que Delvaux costumava frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o “desaparecido”.
Delvaux estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante, desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto” instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de telas, frente a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta, um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a manifestar outra estrutura capilar do artista.
Só faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria.
Não, não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça — asseverou, sorrindo.
Mas só tem aqui autorretratos…
É que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou Delvaux a ironia, dando uma gargalhada.
São muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda?
Não exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso. O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de espírito de então.
E mantém-no aqui desde essa altura?
Sim, ajuda-me a não me esquecer dos meus sonhos de jovem. Nele, espreito-me nesse tempo, como o meu olhar perscrutava a minha imagem no espelho, ou o que dela eu selecionava.
Em casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina, sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência sugeria.
Não; só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar — acrescentou em tom vagamente melancólico.
Parece assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou.
Sim, talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a carvão e a sanguínea… — sorriu-se. — Como dizia a publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare, não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura. — O entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha consciência de que a admiração que provocava nela era o seu alimento. — Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de captar o processo divino. Veja este — mostrava-se a mirar-se de meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o pinta. Este loop provoca uma quase vivência do quadro, mesmo não estando pintado de maneira muito naturalista.
Carina experienciava um estranho misto de deslumbramento pelo brilho teórico de Delvaux, com um mal-estar que radicava na maneira de ele ver o mundo, e que começava a assustá-la.
Deixe-me falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da corte espanhola. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!
Carina já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: “mas tenho de regressar ao escritório onde uma colega me está a aguentar o trabalho”. Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe respondia.

Joaquim Bispo

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Imagem: Egon Schiele, Autorretrato, 1912.

(Este conto, com o título Sandro, obteve o 8º lugar, no Primeiro Concurso Literário do ICBIE Instituto de Cultura Brasil Itália Europa —, 2015)

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