“Vou
a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a
esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma
palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir
horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a
imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de
Arte.
Carina
é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para terem
feito uma qualquer licenciatura e encetado uma carreira profissional,
e suficientemente inseguras por não terem definido um rumo para a
sua vida, quer por indecisões próprias, quer pelas circunstâncias.
Um namorado que nunca mais ganha vontade de assentar não ajuda. Um
dia, a impaciência suplanta a compreensão e o namorado desaparece
ou é corrido, como sucedeu com o de Carina. A partir de então, ela
vive nesse limbo que tem tanto de espera angustiada como de gosto
reganhado de uma liberdade cada vez mais assumida e fruída.
Tem
um pequeno grupo de amigas, também de trinta e pouco anos, que
convida à vez para ir ao cinema, às compras ou a eventos culturais,
conforme a propensão prevalente. Talvez por tê-la convidado em cima
da hora, a amiga Sónia declinou o convite “com pena”, pelo que
Carina resolveu-se a ir sozinha à palestra na Culturgest. Foi cedo,
diretamente do escritório, e sentou-se na terceira fila. A primeira
estava reservada para convidados e os emproados gostam de se sentar
logo a seguir.
Como
esperava, Delvaux fê-la aperceber-se de aspetos em que nunca tinha
pensado no campo da Arte. Aliás, perguntou-se, como teria sido
possível discorrer por si própria, — ela que, embora adorando
Arte, vinha de Direito —, que um colecionador é, em geral, tomado
— na sua obsessão de juntar objetos belos e de valor —, por uma
atitude mental de carência, de reminiscência de períodos em que
queria ter mais objetos e não pôde, em que queria afagos e não os
teve, de uma baixa autoestima, em suma? Ou que é possível detetar
falsas pinturas renascentistas só pela análise dos anéis da
madeira em que foi pintada? Além disso, a figura do crítico
impunha-se não só pela assertividade das declarações, mas também
pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a
harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt
negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final
— “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica
a nossa vontade de divino” — resumia muito do que fora dito.
Quando
terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele,
embora só tivesse admitido que devia agraciá-lo com umas palavras
pessoais de apreço, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não
foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de
agradecimento, porque se juntaram várias à volta do palestrante.
Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre,
que lhe fez um sinal para avançar. A proximidade fê-la temer
algum titubeamento, mas a segurança de Delvaux transmitiu-lhe calma.
Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente
equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras
que não tinha preparado, mas que transmitiam bastante do que sentia:
— Professor,
adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e
inexplorados e senti-me num estado de graça tal, como quando ouço
As Quatro Estações de Vivaldi.
Pensou
ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como
se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e
brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também
uma curiosidade alienígena. Fixaram-na por um momento, enquanto,
impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar.
— Apetece-lhe
um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não
deixava lugar a escusas.
Carina
assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o
convite excedia em muito as palavras pronunciadas.
Quando
Delvaux conseguiu livrar-se do resto do envolvimento festivo da
palestra, sentaram-se no pequeno bar da Fundação, mas ainda
interrompidos esporadicamente por admiradores retardatários. Tanto
por essa falta de sossego na conversa, como pela curiosidade que
Carina manifestou pela pintura de Delvaux, de que ela não
desconfiava, combinaram um encontro para a semana seguinte no ateliê
do crítico.
Agitada,
ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que
tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O
resto se veria.
— O
Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir
esconder uma ponta de inveja.
— Sabes
o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por
mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar.
— Estás
muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele!
— Sónia,
ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça
dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do
telemóvel.
Passados
uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta
do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina.
Entre uma semi-humilhação de ser ela a procurar Delvaux e a
irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu-se a
procurar o crítico e a fazer-lhe notar a indelicadeza, difícil de
perceber num homem impecavelmente atencioso. “Talvez esteja
doente”, pensou, desejando que “antes isso”. Descobrir a morada
do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas em páginas
de Facebook deram-lhe umas pistas das horas em que Delvaux costumava
frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma
dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o
“desaparecido”.
Delvaux
estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício
de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante,
desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O
ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto”
instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava
a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de
uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como
acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de telas, frente
a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta,
um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao
nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a
manifestar outra estrutura capilar do artista.
— Só
faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que
Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria.
— Não,
não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me
proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça —
asseverou, sorrindo.
— Mas
só tem aqui autorretratos…
— É
que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou
Delvaux a ironia, dando uma gargalhada.
— São
muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como
outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda?
— Não
exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de
autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente
expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o
jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um
pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso.
O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de
espírito de então.
— E
mantém-no aqui desde essa altura?
— Sim,
ajuda-me a não me esquecer dos meus sonhos de jovem. Nele,
espreito-me nesse tempo, como o meu olhar perscrutava a minha imagem
no espelho, ou o que dela eu selecionava.
— Em
casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina,
sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência
sugeria.
— Não;
só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das
últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar —
acrescentou em tom vagamente melancólico.
— Parece
assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou.
— Sim,
talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a
carvão e a sanguínea… — sorriu-se. — Como dizia a
publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare,
não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles
extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e
próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem
autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o
pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A
subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura. — O
entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma
aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha
consciência de que a admiração que provocava nela era o seu
alimento. — Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao
capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de
captar o processo divino. Veja este — mostrava-se a mirar-se de
meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que
observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o
pinta. Este loop provoca uma quase vivência do quadro, mesmo não
estando pintado de maneira muito naturalista.
Carina
experienciava um estranho misto de deslumbramento pelo brilho teórico
de Delvaux, com um mal-estar que radicava na maneira de ele ver o
mundo, e que começava a assustá-la.
— Deixe-me
falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma
vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As
meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da
corte espanhola. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!
Carina
já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: “mas
tenho de regressar ao escritório onde uma colega me está a aguentar
o trabalho”. Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto
Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe
respondia.
Joaquim
Bispo
*
* *
Imagem:
Egon Schiele, Autorretrato, 1912.
(Este
conto, com
o título Sandro,
obteve o 8º
lugar, no Primeiro
Concurso Literário
do
ICBIE —
Instituto
de
Cultura Brasil
Itália Europa —,
2015)
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