AS SEIS NOTAS



Não sabia o que vestir, então deixou que sua mãe a ajudasse. Reviraram as roupas do velho baú até encontrarem algo apropriado para a ocasião daquela tarde: um velho vestido de tafetá, mas de um azul bonito e lustroso.

— Teu pai ficava doido quando me via socada nesse aqui. Eu faço um arranjo ligeiro e tu vai entrar nele como se tivesse sido feito pra tu — diz a mãe, visivelmente orgulhosa.

— Anda, Veralda, avia! Vai te assear que eu vou dar uns ponto no vestido, depois a gente pinta a tua cara pra te livrar dessa cor de cera, minha filha.

Coordena os serviços, a mãe. Tem ela o pé nu e de unhas feias posto sobre o pedal da máquina de costura. Uma mão acaricia o tecido que fede à barata enquanto a outra busca por tesoura e linha.

Veralda apressa-se em não decepcioná-la e corre até a cozinha, onde apanha sobre o jirau um pedaço de sabão de coco e uma toalha. Caminha aos pulinhos até o banheiro improvisado com palhas de carnaúba, posto estrategicamente ao lado da cacimba. A água fresca banha seu corpo e Veralda se esquece do calor e das obrigações, pensa nas belas bonecas que ganhará e esfrega a cara com força, como se quisesse se tornar outra. Experimenta o cheiro bom do sabão e lambe sua espuma. Não parece coco.

Quer estender o banho, mas seus braços finos não aguentam puxar mais que três baldes. A aspereza da toalha quase fere sua pele marcada pelas surras e quedas do cajueiro.

— Mãe, bota mais — suplica Veralda diante do espelho, ao ver seu rosto, pela primeira vez, maquiado. — Eu tô bonita, num tô? — Pergunta a filha.

A mãe responde com um muxoxo e se ocupa em desembaraçar os cabelos cheios de piolhos e carrapichos.

— Nem teus irmão homem tem uma cabeça sebosa como a tua, cunhã. E para de se bulir senão eu te dou um cascudo, desinfeliz — repreende a mãe.

Mas Veralda nada escuta. Mira-se no espelho e sonha em ser a princesa que um dia vira em uma revista que sua irmã mais velha trouxera de Fortaleza. Jamais fora à capital do estado. Nem ela, nem seus pais ou seus outros irmãos. Pareciam todos condenados a morrer ali, entre Brejo Santo e São José do Belmonte. Mas, a sorte de Veralda estava fadada a mudar ainda naquela tarde. Teria um quarto só seu e dois bambolês, um amarelo e outro azul. Seria mais rica que qualquer menina.  

— É essa aqui? — pergunta o estranho, de aspecto repugnante.

O homem segura a menina por um dos braços e verifica atrás das orelhas, também dentro da pequenina boca. Talvez procure por feridas, como faria o comprador de um animal.

— É essa aí sim, é bonita, num é? — cintilam os olhos da mulher, orgulhosa por ser boa parideira.

— Essa menina tem mesmo só onze ano? Seu Dosinho só gosta das novinha. A sua cabrocha aqui parece mais velha. — desconfia da mercadoria, o atravessador. Sabia o que lhe aguardava caso pagasse mais caro por algo que não valesse cada centavo.

— Tem mais de onze não, Juarez. É que essa aí come demais. Ou me livro dela ou não crio as outras três pra ficarem assim, vistosa que nem ela. E tá aqui a certidão de nascimento — apresenta a mãe o papel carcomido, o que abona sua retidão em transações comerciais. — Se quiser, pode levar pro Seu Dosinho em pessoa conferir o documento.

Após guardar o papel no bolso de sua calça brim encardida, o homem retira a carteira — cuidadosamente posta entre o cós da calça e seu púbis — e sorri para Veralda.

— O acertado foi seiscentos reais, num foi, Dona Verbênia? Pois tá aqui cada centavo, a senhora já tinha visto uma nota de cem? É bonita, num é?

A mulher acaricia cada uma das cédulas, enquanto seu cliente traz para junto de si o resultado de sua compra.

— Deseje felicidade pro Seu Dosinho, viu, Juarez. E Diga pro Sargento Cardoso que Valfredo não vai poder ir no sábado porque ainda tá cum dor. Mas mando o Valter no lugar dele e faço um abatimento.

A mulher ri satisfeita ao sentir as seis notas de cem reais roçarem-lhe o mamilo rijo. Molha-as de leite.

— Mãe, eu não quero ir — diz a menina ao libertar-se das mãos de seu comprador e correr até sua cachorra. Abraça a cadela prenha como quem procura o carinho de uma boa amiga. — Eu quero ver os cachorrinho da Pidoga nascer. Depois que ela parir, a senhora pode me mandar pro Seu Dosinho.

Nervosa, a cachorra balança o rabo. Seus olhinhos castanhos molhados pelo choro da menina que ama, ficam apertados. Se soubesse o que se passa, morderia esses dois infelizes que as separarão para sempre, Veralda e ela, e que também se livrarão de seus filhotes antes mesmo que eles desmamem.

A mãe, extremamente constrangida, toma a filha para si. Paciente, como só as mães sabem ser, seus olhos reluzem enquanto ela diz:

— Deixe de besteira, Veralda. Vá logo com o Juarez. Pra que tu quer ver os filhote da Pidoga? Que serventia tem isso? Se preocupa em fazer logo um teu, pensa direito, ou tu num é minha filha?

Muito séria, Veralda para de chorar e entrega sua mão a de Juarez.

— Eu preferia ser filha da Pidoga — diz, vingada, antes de partir.


Emerson Braga

Comentários

  1. Pobre Veralda! Parabéns pelo texto sempre comovente, Emerson.

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  2. Ah, essa miséria que só produz indensíves ou infelizes! Que triste! Que lindo! Um retrato verdadeiro da vida de tantas e tantas meninas, princesas de pezinho encardido e sorte ingrata. Muito bonito.

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