E
então um dia a Natureza condoeu-se daquela fraca borboleta.
De asas
mutiladas por homens repletos de altruísmo, resolveu retornar ao purgatório
casulo a fim de tornar-se magra, mas tolerável lagarta. Ainda hoje mastiga, autômata,
seu insosso maço de folhas secas.
Odiava o modo como meu pai me olhava. Aquele
pestanejar de pálpebras e o quase imperceptível balançar de cabeça ― que
oscilava entre a compaixão e o desapontamento ― eram o meu regime. Ele me
condenava por eu não ter herdado a macheza atávica que me havia sido destinada.
Meus gestos tornavam os corredores de nossa casa escorregadios, pegajosos,
imundos. Nada que eu fizesse para agradá-lo surtia efeito. Meus irmãos eram os
varões. Eu a varíola.
Desdenhosos lacaios da aversão que papai
me dirigia, os espelhos condenavam meus olhos, o som de minha voz e os
pensamentos que eu havia alcunhado secretamente de sombrios. O eu refletido era
de um sarcasmo aterrador, ria de mim com uma paixão violenta. Por ser meu
oposto, era o desejado filho, aquele que não possuía pensamentos sombrios.
Eu sofria. E minha dor era um minotauro
que me perseguia por infinitos corredores de dúvida, culpa e negação. Sempre
que eu cedia aos meus proibidos impulsos, mais próxima espreitava a fera
mitológica. Seu espectro grotesco afugentava os corpos nus e de masculinidade
hiperbólica que vagavam por meus deslizes. Na equivocada matemática de meu
corpo, cabeça, tronco e membros resultaram em um somatório obtuso. A aritmética
de minha identidade adicionou-me, subtraiu-me, multiplicou-me, dividiu-me,
potencializou-me e extraiu minhas raízes. E, no final, resultei em um total
estéril.
Descobri ainda em minha juventude que
eu não era nada. Por isso meu pai quase não me via, e os espelhos tampouco me
enxergavam sem desdém.
Leprosos, diabéticos, hemofílicos, todos
os mazelados despertavam uma mórbida inveja em mim, o anseio de ser um deles.
Eu amava os pontos cardeais esculpidos sobre a topografia da dor. A
convalescença contínua permite que os doentes sejam tratados com misericórdia. Mas,
ninguém cuidaria de mim. Pessoa alguma se apiedaria das pústulas assintomáticas
de minha vergonhosa doença, meu desequilíbrio secreto, meu mal sombrio.
Quantas tentativas infelizes, tantas
investidas em inúmeras religiões. E nenhuma foi capaz de adormecer minhas
madrugadas em claro. Eu era a serpente, carregada de peçonha, que secretava
muco diante da serena pureza de meus bons pregadores. As orações misturavam-se ao
meu execrável orgasmo, e Deus não permitia que eu pensasse em amor.
Prostrado diante da humilhante condição
de ser quem ― contra o meu próprio arbítrio ― eu era, resolvi tornar-me outro.
Um outro ao qual a óptica paterna pudesse encarar, sem constrangimentos. Um
outro que mimetizasse aquele que vivia no interior do espelho.
Arquitetei uma nova identidade. Adquiri
o método que, biologicamente, não me havia sido transmitido. Não sei bem se resultei
em um ser humano feliz. Mas, ora! De que vale a felicidade quando ela chega
dentro de uma garrafa, solta no remoinho? A felicidade é privilégio daqueles
que não temem as moléstias da alma. Eu temo.
Ajoelhada ao meu lado, diante do altar,
exibo a mulher que sitiará meus vícios e me parirá filhos saudáveis. Enquanto
meu pai me observa com ares de absolvição, sou acometido por um irrefreável
pensamento sombrio. Nego-me a abater-me diante dele. Mas, o que importa agora?
O pensamento é uma mácula que os olhos não veem. Venci-me. Derrotei-me. Logo
estarei casado.
Que
moço simpático, que rapaz gostoso é esse padre!
Troquem-se as alianças. Amém.
Emerson Braga
5 comentários:
Sutil :)
Sempre primoroso em seus escritos! Mais um conto belíssimo que vai para minha coleção!
Magnífico!
Forte, real. Triste retrato de tantos que escolhem o conviver e, em nome disso, abdicam de ser. Belo texto.
Forte, real. Triste retrato de tantos que escolhem o conviver e, em nome disso, abdicam de ser. Belo texto.
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