A estrada de quatro pistas passa embaixo dos meus pés a uns 110 km por hora.
A trilha sonora da Pajero é a playlist datada de Rômulo, que se restringe a
Beatles, Simon and Garfunkel, The Mamas and the Papas, Herman Hermits, Sinatra, Jobim,
Chico, Caetano, Gil e alguns clássicos do jazz. Pronto. Agora entrou “Rapsody in Blue”,
quando teremos ainda 17 minutos e uns quebrados de quilômetros para pensar em Nova York
e sua efervescência saudosa, já que a falta de dinheiro sobrando nos obrigou a trocar
salas vips de aeroporto por viagens curtas, no máximo a duas horas da porta de casa.
Sigo calada. Minha especulação sobre a idade dos eucaliptos gigantescos que margeiam
o acostamento é interrompida por um tormento que está na minha trilha sonora permanente
em pano de fundo, sobrepondo-se ao Gershwin momentâneo. Tento tirar a obsessão
sub-reptícia da cabeça, tento lembrar da bronca que dei em Bebel e Caio, que mais uma
vez, começaram a brigar no banco de trás porque o ar condicionado de Rômulo é impiedoso
e o cobertor emergencial do carro é curto.
Broncas em adolescentes, playlist nostálgica, desconfiança de um fim de semana
no sítio de um casal das relações originais de Rômulo - de mínima identificação com
meus gostos me manias -, saudade dos tempos fartos, olha o radar, diminui a marcha,
como pode num horário desses uma jamanta atrapalhar nossa curva acentuada à esquerda?
Tudo que vejo, sinto e penso de trivial não passa de manobra diversionista e evasiva
para que minha trilha sonora secundária, secreta, intrasferível e tormentosa me dê
uma trégua. Mas não adianta. É como se algo estivesse tocando sem parar no meu ombro,
clarinetando uma sinfonia aguda e monocórdica aos meus ouvidos, levando aonde moram
os sentimentos – no coração, no cérebro, no clitóris – a imagem pontual da desilusão:
Fábio me dizendo que decidiu se casar com a noiva.
- Está fugindo de mim, garoto?
- Não é bem assim, Cátia.
- Como não? Depois que te ensinei tudo de cama, você vem me dizer que prefere
a lambisgóia?
- A gente não tem futuro, Catita.
- E pra quê futuro? A gente tem o momento presente.
- Não. Eu quero futuro. Eu quero uma família como a sua. Ter um casal de filhos,
ser marido provedor, viver casamento estável.
- E um sexo de merda.
- Dri não é uma merda. Você mesmo inventou que gatinha de 22 anos sabe nada de trepar.
Mentira. Gatinha com tudo durinho no lugar trepa desde os 15.
A frase de Fábio humilhou meus 46 anos. Soou como um ponto final numa brincadeira que
de tão arriscada já estava para lá de gostosa. Começou na academia há dois meses, foi
ganhando uma dimensão além da curiosidade sexual pelo personal trainer e quando nos
desnudamos de corpo e alma, descobri um menino frágil e musculoso, invasor e meigo,
potente e dengoso, daqueles que no torpor da pós função tórrida se bota no colo e
se dá beijinho na testa, beliscões de brincadeirinha na bunda, mordidinhas na orelha,
e se faz cafuné.
Estava tudo muito conveniente. Depois da primeira vez tensa, houve uma sequência de
primeiras vezes, pois a cada encontro o relaxamento progressivo nos fazia descobrir
novos detalhes eróticos e ousadias sensoriais um do outro.
Tinha a ilusão do controle da situação. Tudo na mais perfeita ordem.
Ele, garotão indócil e portentoso, tatuado e bem-dotado, noivo de uma noiva standard
com ciúmes naturais, exímio inventor de desculpas para fugir da rotina e me mergulhar
à tarde. Sabia como ninguém despir meu legging e me jogar na cama como se fingisse
iniciar um alongamento, quando meus músculos se entregavam ao seu comando.
Eu, madame – adoro me achar madame – pseudo atolada com afazeres domésticos, boa
prestadora de serviços matrimoniais clássicos a um médico demandado e a uma família
intensa, ciente dos limites da aventura que estava me metendo.
A vida caminhavam direitinho na estrada bem pavimentada, mas com irresistíveis
desvios travessos e deliciosos. Mas agora, por coincidência metafórica infeliz, me
vejo numa rodovia lisa de caro pedágio, sem enxergar o caminho clandestino que me levava
aos banhos da alma. Digo “levava” porque sei que acabou. Claro, sua burra, não podia dar
certo. Fábio foi eloquente ao seu jeito e definitivo quando me comparou à lambisgóia.
- Fizeram boa viagem?
- Sim, claro. A estrada é muito boa. Coisa rara nesse país esburacado.
Marta e Geraldo riram do mau humor bem-humorado de Rômulo. Eu sorri amarelo, dei dois
beijinhos no casal e olhei fundo para Bebel e Caio.
- Ei, sejam educados: vamos dar um beijo na Marta e no Geraldo?
Filho em situações limite como essa fuzilam pais de esguelha. Mas cumpriram com educação
o rito das boas maneiras. Marta deitou elogios.
- Lindos seus filhos! Entrem, vamos conhecer a casa. Reservamos o quarto dos jovens para vocês, Caio e Bebel. Todo mundo junto, fazendo bagunça. E para o casal, a suíte dos hóspedes especiais.
Suíte. Inconveniente gatilho.
- Essa suíte tem cheiro de mofo.
- Ah, Catita. Esse motel é o que eu posso pagar.
- Não, meu menino, não estou reclamando. Só tenho medo de ter um ataque de espirro.
As pequenas lembranças bobas e remotas me futucam a tristeza e avisam que ainda não
cheguei onde pareço ter chegado. Sim, vejo uma casa de bela arquitetura normanda,
com fícus subindo pelas paredes, telhados pontudos e mansardas floridas, no meio de um
gramado que lembra um campo de golfe. Ouço um riacho de uma nota só, suponho, que
corre atrás de um platô que recebe a piscina, onde Caio, Bebel, Julia e Marina já se
enturmam entre risadas e mãos chacoalhando a temperatura gelada da água.
De repente, me assusto com um ganso que me cheira.
- Não precisa ter medo, Cátia. Ele é manso e discreto. Mas à noite, finge que faz a
guarda do sítio. Não gostamos de cachorro.
- Adoro gansos. Esse é lindo e combina perfeitamente com a paisagem. Parece um domaine
no Vale do Loire, a hora e meia de casa.
- Exatamente. A gente tenta trazer pra gente o melhor que o mundo nos apresentou.
Engreno uma conversa simpática com Marta. Mas não estou ali.
- Para de chamar de paté. Isso é foie gras, Fábio.
- Paté metido a besta.
- Ah, meu menino, você não tem jeito. A pessoa se esforça, vai na delicatessen, produz um
pic nic numa tarde num motel, e o amante não alcança.
- Não sou seu amante. Não gosto da palavra amante.
- Ah, meu menino... amante é tudo que somos... mais que isso é atravessar muito o sinal.
Vem cá, vem, vamos cometer mais uma infração... juro que não vai ter multa.
Estocadas de saudade ferem e doem, tento disfarçar com sorrisos. O almoço gourmet até que
seguia divertido e consegui sustentar o cinismo, embarcando nas histórias tolas de Rômulo e
Geraldo dos tempos do colégio.
- Lembra da Glorinha?
- Glorinha?
- Não se faça de sonso, Rômulo. Tá com medo da Cátia?
- Não, não, ela não tem ciúme retroativo.
Todos riram. Arrisquei uma pergunta de madame.
- Que Glorinha é essa, que você nunca me falou? Você sabia dessa Gloria, Marta?
- Não sei, não quero saber. Espero que tenha engordado muito.
Risos e tilintar de taças. Geraldo segurou a minha mão.
- É jogo da verdade, né? Então, aceito mais vinho.
- Ôpa, Rômulo, olha lá o que vai falar.
- Nada de mais, Gegê... Glorinha foi um ponto de interseção entre nossa amizade que o
tempo sábio cuidou de dissipar.
Não me contive.
- Meu marido é um poeta.
Marta também não se conteve.
- Agora explica essa interseção...
- Tranquilo, Marta, coisa de garoto. Dividíamos Glorinha. Uma para dois, entendeu?
- Entendi, Geraldo. Não precisa falar mais. Senão eu vou pensar mal da desfrutável.
Rômulo, com o bom humor aditivado pelo terceiro cabernet na mesa, levanta a taça.
- Salta uma Glorinha para dois!
Todos riram. Marta, feminista, balançou a cabeça com um sorriso desaprovador. Eu,
de certo, ri com mais cinismo e com uma fisgada doída da memória breve.
- Tem certeza que seu marido não desconfia da gente, Catita?
- De jeito nenhum. Sou fera, meu filho. O que faço aqui repito no fim de semana.
Claro, com outras vontades e motivações, mas repito.
- Já entendi. Uma Cátia para dois.
Rômulo e Geraldo meteram-se, não sei como, pela adega no subsolo da casa. Talvez um
amparando o outro na escada, com grandes possibilidades de só aparecerem no breu da
noite. Marta pediu licença para uma sesta. Os filhos foram jogar ping pong num
caramanchão bem longe da sede e eu fiquei a vagar pelo campo de golfe, com o pensamento
além das montanhas que circundavam a paisagem. Vaguei e divaguei, divaguei e vaguei.
Encontrei o tal riacho que só conhecia de ouvido. Águas cristalinas, entre pedras cobertas
de limo. Folhas longas em caules delgados pincelavam suas margens, num balé contínuo e suave.
Sentei na beira de uma pedra, tirei as sandálias e senti um jorro de água fresca,
que me subia às pernas e aos pensamentos.
Olhei o céu roseado: logo se dará o crepúsculo, quando as sinceridades afloram, as feridas ardem, os criminosos confessam, os fantasmas aparecem. Fábio com a lambisgóia. Ou indo ao cinema.
Ou fodendo a moça. Ou pedindo a mão dela em casamento - ele tinha dessas babaquices toscas.
Mas seja qual for a alternativa, doía. Por quê? Por que logo comigo? Uma mulher madura e aparentemente bem casada? Por que um garotote malhado balançou meus alicerces? Não era só sexo? Sexo casual, como dizem. Casual é o caralho. Quando a brincadeira de criança passa, fica uma dor adulta. Não acredito que meus olhos estão se encharcando. Não acredito que minha cabeça estonteia,
meu sangue acelera, fervem as entranhas, dispara o peito, falta o ar. Não acredito que estou apaixonada. Vou vomitar o boeuf bourguignon, as batatas rústicas, o creme brulee e as taças de cabernet sem fim. Idiota, estou com uma saudade cortante do Fábio. São as águas cristalinas do riacho que me avisam. Saudade do que foi, do que passa e não volta mais, do que poderia ter sido.
É raiva da vida, é asco de Rômulo, é - Deus me perdoe - saco cheio de Caio e Bebel e
suas alterações hormonais, suas crises de puberdade e espinhas. Quero que essa casa pegue fogo,
com Marta dormindo e os dois bêbados flambados na adega. Que se salvem as crianças e não
apareçam mais. Fábio, filho da puta. Noiva puta filha da puta, neta da puta. Bisneta bastarda da puta. Vou esganar a lambisgóia.
Que diabo é isso? Uma bicada na nuca? O ganso! Levanto súbita da pedra, quase escorrego.
Ganso filho da puta também, vai dar susto na mamãe ganso. Contando ninguém acredita. Estamos cara a cara, no lusco fusco do dia estranho que se despede, na beira de um riacho alegre, na iminência de um duelo de morte. Uma bicada certeira pode me levar ao desequilíbrio entre as pedras escorregadias, um traumatismo craniano sem socorro imediato pode ser fatal, considerando que ninguém imagina que eu esteja de alma em frangalhos estatuada diante um ganso. A eternidade da situação patética é paralisante. Embriagada de coragem, dou o bote primeiro e fecho seu bico com a mão esquerda, e com a direita agarro seu pescoço. Sou forte ambidestra. E aperto, aperto, aperto.
É o pau do Fábio. Aperto, aperto, aperto. Ele faz que geme. Aperto, aperto, aperto, aperto. Ele bate
as asas, tenta grasnar, pedala o ar, esbugalha os olhos, até que a maravilha da natureza em branco e elegância amolece nas minhas mãos. E agora?
Putaquepariu, matei a porra do ganso. Bicho pesado desgraçado. Pego seu pescoço molengo
e arremesso o animal no riacho que desce. O cadáver se prende entre o vão de duas pedras.
Arregaço o legging, molho os pés, as canelas, as batatas das pernas, vou equilibrista
até lá e, na quase penumbra, solto o bicho correnteza abaixo, que, por sorte e surpresa,
vira uma curva que vai desembocar num ribeirão curto, afluente de um rio de águas revoltas,
que o faz desaparecer pela corredeira furiosa.
Amanhã todos vão dar falta do ganso. Mas eu tenho mais com o que me ocupar.
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