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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Rembrandt em Havana


Herejes


Cuba já possuia uma comunidade judaica importante. Na década de 20, parte significativa dos judeus de Kirklareli, no finado Império Otomano, passaram por lá - muitos ficaram, outros partiram para os Estados Unidos e até para cá..., mas isso é assunto para outro momento.

O fato é que, por pressão americana (os EUA só entrariam na guerra no final de 1941), Cuba foi forçada a negar o asilo, ao cobrar dos refugiados tamanha soma de dinheiro que, na prática, fez com que o navio retornasse para Hamburgo da forma como veio. Desesperados, os passageiros saltavam ao mar. O navio também foi expulso dos EUA e do Canadá. Escrito antes do estouro da crise de refugiados de 2015, é impossível lê-lo, hoje, sem traçar algum paralelo com a situação atualmente vivida pelos sírios em direção à Europa.

Mas, em 1939, ao menos uma pessoa conseguiu desembarcar do Saint Louis.


Daniel Kaminsky era então um garoto. Como conseguiu isso? O tio Joseph, que já aguardava os Kaminsky em Havana, tinha algo a oferecer. Algo que estava com a família há geraçõs. A chave está numa imagem de Cristo, atribuída a Rembrandt, e que foi utilizada como moeda nas docas de Havana. A corrupção imperava na Cuba daqueles anos. Padura é uma figura peculiar na Cuba castrista: claramente não alinhado ao regime, é por ele tolerado com liberdade. Não se furta a tratar da corrupção de seu país, bem como a decadência pós-URSS. Ao mesmo tempo, mostra um povo capaz de viver como se estivesse sempre em uma festa, apesar da situação política e econômica caótica.

Mas, na Havana atual, Mario Conde, ex-policial, livreiro e eventualmente detetive, é procurado por Elias, filho de Daniel. Quer saber o que exatamente aconteceu naquele episódio - afinal, os pais e irmãos de Daniel voltaram para a Alemanha e morreram nos campos. O que, exatamente, não funcionou naquele dia?

No entanto, o grande momento do livro não é o século XX, e sim, o XVII. 


O mistério em torno da tela de Rembrandt remete à Amsterdam de 1645-1647, a situação dos judeus e também a relativamente pouco explorada situação interna da comunidade. Havia um judeu trabalhando com o Mestre. E talvez o maior momento da pesquisa seja justamente a última parte, com a carta descrevendo o pogrom da Polônia, também no século XVII. A carta vale o livro.


O post deve parar por aqui - afinal, trata-se de um romance histórico mas, também, policial. Padura fecha muito bem as três histórias que compõem Hereges: do Saint Louis de 1939, passando por Amsterdam de 1645 e Cuba de 2007, passando por refugiados judeus em Cuba e refugiados cubanos em Miami e pela Cracóvia de 1648.


Mas, atente aos hereges: Daniel é um herege, ao abandonar a fé judaica para se tornar um cubano típico - ele faz um esforço deliberado e consciente nesse sentido; o judeu que trabalha para Rembrandt, pintando e desenhando figuras humanas de forma clandestina em Amsterdam é um herege, assim como Judy, jovem cubana privilegiada que se torna emo - sua história toma a terceira parte do livro, mas é justamente a que menos funciona em toda a narrativa. Os hereges estão aí em busca de liberdade. Na entrevista para O Globo:

Decidi resgatá-lo para uma história que deveria abarcar a relação das pessoas com as ortodoxias que nos rodeiam e a busca pela liberdade. Primeiro, a história de um adolescente judeu que chega a Cuba vindo da Europa e começa a assumir o modo de vida da ilha até se converter em um cubano. Depois, a história dos judeus sefaradis na época de Rembrandt e a da jovem que pertence a uma tribo urbana no presente cubano. 

Padura se mostra, como em O homem que amava os cachorros, um grande e detalhista pesquisador - além de excelente romancista.

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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
todo dia 04


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