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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Olho por ele

Quando a professora deu a tarefa para casa tive certeza de que estava na hora de apresentá-lo a todo mundo. Era para a gente escrever no caderno o nome completo de um amigo especial e no dia seguinte, na roda da conversa, mostrar a folha com a anotação e falar um pouquinho sobre a pessoa que cada um escolheu.

Eu conheço uma porção de gente legal, mas amigos mesmo só tenho três. A Nina, que é uma guria engraçada da minha turma, o meu primo Lucas, que não fala direito porque ainda é um bebê, e ele. Eu poderia escolher a Nina, que é quem mais brinca comigo, mas ela é tão cheia de fãs que é bem capaz de o nome dela se repetir na lição dos colegas. Além do mais, ela tem um nome curto, muito fácil para o meu gosto. É só colocar o êne, o i, depois o êne de novo e o a. O sobrenome é outra barbada, ême, ó, te de tomate, e a. Mota. 

Não sei, e a Nina também não, porque ela só tem um sobrenome. Eu tenho dois e já aprendi a escrevê-los com as letras de mãozinha, assim:


Fica bonito o meu nome desse jeito, todo junto no papel. Mas o meu nome os colegas de aula estão carecas de saber. Eles também sabem quem é o meu primo Lucas, pois a tia Laura de vez em quando me busca na escola e leva o guri no carrinho, e sabem tudo o que ele faz: chora, mama, dorme e faz xixi e cocô. Como faz! 

Dos três, quis ele. E daí reparei que tem um problema: eu não sei o nome dele. Nunca me disse. A gente quando se encontra conversa tanto e ri e fala de como vai ser quando eu for adulto e ele me conta que os passarinhos e as árvores de onde ele vem são perfumados e que a água é fresca e transparente e corre num rio pertinho do canto em que ele dorme, e é tão bom papear, que eu me esqueço de perguntar que nome ele tem. Hoje vou perguntar.

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Quando nos conhecemos, ele aparecia sempre na hora de deitar, depois que a minha mãe ou o meu pai apagavam a luz e saiam. Então, o quarto era invadido por criaturas estranhas e fedidas, que ficavam encostadas nas paredes, olhando para mim. Algumas às vezes gritavam, às vezes tentavam abrir a janela, às vezes queriam puxar as minhas cobertas. Eu ficava apavorado e chorava até meus pais me socorrerem. Era ligar a luz para sumirem todos, de uma vez só, puft, e eu passar por inventador.

A mãe e o pai, quando contei da presença dos estranhos, fizeram umas caras, franziram testas, levantaram sobrancelhas. Disseram que era normal meninos da minha idade fantasiarem com monstros e terem amigos invisíveis, imaginários, impossíveis. Ficariam de olho em mim de madrugada e gastariam uma fortuna com conta de luz no final do mês para eu dormir na claridade, tranquilo.

Ele era esverdeado e cheirava um pouco mal, mas não me dava medo. Sentava na ponta da cama, próximo aos meus pés e, com o dedo indicador colado na boca, fazia shhhhhh, para eu parar de chorar, que ia ficar tudo bem. Tinha razão. Com o tempo, ele foi espantando uma por uma aquelas pessoas da noite do meu quarto e logo descobriu um jeito de ficar apesar da luz acesa.

Naquele dia esperei por ele tudo o que pude. A minha mãe até brigou, que era tarde para criança estar acordada, fervendo. Disse que se eu quisesse crescer tinha que dormir bastante, que eu ficasse com meu anjo da guarda. Deu um beijo na minha bochecha, puxou a colcha até o meu nariz e fechou a porta. Deixou a luz do abajur acesa, porque eu não gosto do escuro. Nunca gostei.

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As tarefas da escola eu faço pela manhã assim que levanto da cama. Tomo meu leite morno ou o meu iogurte com rodelas de banana e já me agarro aos lápis e cadernos. Adoro. Acordei preocupado. Como fazer a tarefa sem o mais importante, sem saber o nome do meu amigo especial? Desde a história dos estranhos no meu quarto que as pessoas aqui em casa me ouvem com desconfiança, acham que eu invento. Detesto que não acreditem em mim e tenho o maior cuidado para fazer as minhas coisas com muita verdade. Pensei em criar um nome, já que meu amigo não me disse o seu. Antônio, Marcelino, Vicente, um bom que só de dizer já mostrasse o cara sério e calmo que ele é. 

A ideia era boa, mas eu não minto. Mais. Então desenhei o meu amigo especial para a professora ver. Fiz um retrato só do rosto. Usei poucas cores, porque apesar de esperto e conversador ele não é uma pessoa muito colorida. Pintei com os três verdes que eu tinha e coloquei cinza perto do nariz e da boca. Demorei demais nos olhos, a parte mais difícil de fazer, porque são muito diferentes dos meus. Não têm os cabelinhos naquelas peles finas que abrem e fecham. Não têm também as bolinhas de dentro, a preta menor do meio do olho e aquela que pode ser azul, marrom, verde... Ele tem olhos sem enfeites. É só uma bolotona branca, que nem ovo frito sem gema. Risquei a boca, rapidinho coloquei ouvidos e cabelos e pronto. Tarefa terminada. 

Lembrei das vezes que ele vinha me ver e jogávamos dominó até entrar sol pela fresta da janela. Ele gostava da peça zero-zero, com os dois lados vazios e eu preferia a seis-seis, lados cheinhos. A mãe encucava com as minhas olheiras no dia seguinte. Tem coisa errada aí, se o guri dorme as noites redondas, ué. Não tinha nada de errado. A gente jogava e conversava. Eu mostrava as letras novas que aprendia na escola empilhando dominós sobre a colcha. O K saiu desengonçado. Ele dizia que nem sempre podia viver no canto com os passarinhos perfumados e árvores e a água fresca e transparente. É que aquele era um lugar feliz, por onde só andavam pessoas com felicidade, explicou. Enquanto arrumava a mochila, fiquei pensando e entendi: ele não cabia no canto feliz quando estava sem felicidade. Vou dizer ao meu amigo sem olhos que ele cabe no meu quarto para sempre, que é um bom lugar para morar.

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A roda da conversa começa a aula. O que a gente faz no resto da tarde depende do que a turma combina ali, sentada no chão, joelho com joelho. A professora organiza quem fala primeiro e quem fala depois, e diz que ouvir com atenção o que cada colega conta é importante, é respeito. Eu acho que eu gosto de respeito, porque quando é a minha vez de falar alguma coisa prefiro que não me interrompam. Foi a minha vez depois da Renata, da Roberta, da Nina e do Tiago. Mostrei o retrato que fiz do meu amigo sem olhos. A professora queria saber onde havia escrito o nome completo do amigo especial. Contei o motivo para não ter o nome escrito. Ela disse que o meu trabalho estava caprichado e quis saber quem me ajudou a fazer. Fiz tudo sozinho. Ela quis saber mais dele. Contei. Contei do escuro, dos estranhos fedidos e de como ele os espantou, do dominó, da falta de felicidade que ele tinha e da minha vontade de ter o meu amigo sem olhos morando para sempre no meu quarto. 

Terminou, Tadeu? Sim, terminei. Esperava que a professora fosse gostar tanto da minha tarefa que penduraria meu desenho no varal dos artistas, no fundo da sala, mas não. Ela respirou bem fundo, arregalando os olhos, e pediu aos colegas que restavam que apresentassem suas escritas. A professora conversou com a minha mãe longe de mim na saída. No caminho para casa a mãe andou em silêncio comigo pela mão, olhando para um longe tão longe que parecia perdida. E parecendo perdida ficou até que meu pai chegasse do trabalho. Mandou que eu tomasse banho e esperasse no quarto, pois precisávamos ter uma conversa. Fui.

Eu tomo banho sozinho faz tempo. Não consigo ainda lavar direito atrás das orelhas e no umbigo, mas isso a mãe resolve depois com cotonetes. Meus pais me esperavam sentados na minha cama, muito sérios, quando saí do banheiro. Queriam saber por que eu tinha voltado falar sobre homens sem olhos e estranhos fedidos. Porque tinha voltado a contar mentiras. Por quê? Estavam decepcionados.

- Mas eu não minto, mãe. O meu amigo sem olhos existe. Ainda não sei o nome dele. Vou perguntar assim que ele aparecer.

- Meu filho, que amigo é esse que a gente não vê? Nunca? E se é teu amigo, vamos supor que ele exista, como podes não saber o nome dele?

- Pois é, mãe. Acho que não tenho sido um bom amigo. O nome é importante, mesmo, né? É a primeira coisa que se pergunta de alguém. Eu me esqueci. E ele sempre me chamou pelo meu nome, como se já soubesse, se já me conhecesse. Eu prometo que vou perguntar e levo anotado no caderno amanhã para a escola.

- Tadeu, a tarefa é o de menos, agora. Vamos refazer junto contigo, está bem?. O que não pode, de jeito nenhum, é tu voltares com as mentiras, filho. Quem vai acreditar quando disseres a verdade? Quando for um assunto sério?

- Mãe, eu não minto mais. Eu não menti. Eu juro. E assunto de amigos especiais não é sério?

Recontei a história umas quantas vezes, repeti detalhes, insisti por muito tempo com meus pais, mas não arredaram pé: para eles era tudo invenção minha. Teu amiguinho é cego, Tadeu? Se não tem olhos, como enxerga? É um adulto, esse amigo? Porque ele não conversa comigo e com a tua mãe, meu pai queria entender. 

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Meu amigo sem olhos ouviu a conversa que tive com meus pais. Ficou do outro lado do quarto imóvel, até que eles fossem embora, me deixando pronto para o sono, coberto até o nariz, luz do abajur acesa.

- Tadeu, não fica assim. Eu entendo que eles não acreditem em mim. Não podem mesmo me ver. Eu, na verdade, não os vejo também. Não os vejo por mim. Todas as coisas deste mundo só posso ver com a ajuda dos teus olhos. Reparou nos meus olhos?

- Sim. Os teus olhos são duas bolotas brancas, sem as bolinhas de enfeite. Como assim, não vês? Não podes me ver? Não sabes que os meus cabelos são curtinhos e marrons? Que eu tenho orelhas grandes? Que o meu cobertor é amarelo?

- Eu sei. E eu te vejo dessa forma: chego muito perto de ti, encosto as minhas mãos na tua pele e aí consigo ver com os teus olhos. A mesma coisa que tu vês. É muito bonito o jeito que tu olhas e o tanto que tu vês, sabias?

- Então é assim? Tu colas em mim para ver o que eu vejo?

- É. Distante de ti não vejo nada.

- Ah. Entendi.

- O que foi? Porque essa carinha?

- É que eu nunca vou poder falar de ti para ninguém. As pessoas acham que é mentira. Não te enxergam e logo pensam que não existes. Não sei o que fazer.

- E se tu também não me visses mais?

- Não queres mais ser meu amigo, Sem Olhos?

- Não é isso. Amigos como nós não se deixam, não vão embora. Mas se a minha figura atrapalha, essa é uma questão a resolver. Posso existir para ti sem que me vejas e então a minha presença não será mais um problema, entendes?

- Mais ou menos.

- Criamos um código: quando eu vier, invisível, toco no teu ombro assim e vais saber que estou aqui pela sensação. Pela proximidade. Pelo calor da minha mão. Vou aproveitar essas ocasiões para ver. Contigo. Está bem assim?

- Tá bem.

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Acordei cedo para refazer a tarefa com a ajuda da minha mãe. Foi rápido. Escrevi Nina Mota com letras de pauzinho e de mãozinha. Sobrou tempo para desenhar a minha amiga com o vestido azul estrelado, o preferido dela. Na roda da conversa, a professora elogiou a minha tarefa: as letras bonitas, as cores do retrato, o esforço, tudo confirmava o tanto de especial que a minha amiga era. Era, sim.

No recreio, a Nina me deu um abraço apertado por eu ter escrito o nome dela. 

- Não tem de quê.

- Tem sim, Tadeu. E eu acredito no teu amigo sem olhos. Acredito em ti. Vocês ainda jogam dominó? Ainda se vêem? Posso ser amiga dele também?

- Se a gente ainda se vê? É complicado, Nina. Agora eu olho por ele. É melhor assim.

Antes de correr até o campo de futebol senti meu ombro aquecer e a Nina comentou de uns arrepios perto da nuca. Ele estava ali, olhando o pátio, conosco, o meu amigo sem olhos.

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
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