Quando eu era criança, minha mãe adotou
um velho. Ele não era diferente das bruxas que assombravam meus sonhos e muito
menos de como eu imaginava o homem que havia ― em minhas inventivas crenças pueris
― carregado em um saco os amigos dos amigos de meus amigos.
Conviver com ele, ao menos nos
primeiros dias, foi como dividir a casa com um defunto. De carnes engelhadas e
estrutura óssea comprometida, o homem não apresentava nenhuma ameaça, e mesmo
assim eu o temia. Vê-lo dormir de olhos semiabertos e boca enviesada era como
assistir sozinho a um filme de assombração. Sob a pele sem viço de meu assustador
irmão adotivo moravam todos os lobisomens, vampiros e fantasmas que passeavam
por minha imaginação de menino do interior, nascido em uma cidade que levava o
mesmo nome de seu único cemitério: Assunção.
Eu nunca havia convivido com alguém tão
parecido com a morte até mamãe recolhê-lo da rua, depois de encontrá-lo perdido
na praça, sem saber quem era ou de onde vinha. Ninguém o conhecia ou sabia dizer
como ele havia chegado ali. De roupa alinhada e aspecto bem cuidado, não
parecia um mendigo. Surgira da noite para o dia, como uma aparição. Não trazia
bagagem, identidade ou lembrança capaz de revelar sua origem.
Mamãe resolveu levá-lo à nossa casa para
livrá-lo do assédio dos curiosos e oferecer-lhe o desjejum.
― Eu não quero ser comido! ― orei, sob
a máquina de costura, agarrado ao burrinho de gesso do presépio. ― Só te
devolvo pra Jesus quando esse papão for embora.
Mas o velho tudo recusou. Não quis
mingau de farinha de milho e muito menos roer meus frágeis ossinhos. Apenas
chorava e queixava-se de saudades, sem saber do quê ou de quem.
Os dias passaram. Papai e mamãe, órfãos
desde muito jovens, afeiçoaram-se àquele senhor que havia roubado minha paz de
menino. O velho, apesar de quase não falar, procurava a companhia dos adultos e
recusava a minha. Já parecia acostumado à rotina da casa, sempre tão silenciosa
e estagnada, submersa na ausência do tempo. Enquanto mamãe bordava toalhas e
papai cuidava da lavoura, eu me distraía fugindo do velho que se arrastava da
sala à cozinha feito um caramujo. Lentidão. Viscosidade.
Com o tempo, meu temor transformou-se
em curiosidade. Gostava de vê-lo mastigar fumo, enquanto espiava pela janela do
quintal como se buscasse a mais completa cegueira. O velho esvaziava-se através
dos olhos compridos e, como suas lembranças, aos poucos deixava de existir.
Uma tarde, tomei coragem e dele me
aproximei com meu burrico de gesso, que ofereci em um gesto de paz. O
velho esfregou os dedos calejados sobre a imagem e arregalou os olhos como se algo
em sua alma se iluminasse. Perguntei:
― O senhor se lembrou de alguma coisa?
Sabe de onde veio?
― Não. E você? Sabe de onde veio? ―
respondeu-me com a mesma pergunta, enquanto cavalgava o burrinho sobre meus
cabelos.
Não. Eu não sabia.
Enfim, percebi que não éramos tão
diferentes. Sem pedir licença, sentei-me em seu colo e dormimos juntos a tarde
inteira, no balanço da cadeira que ia e vinha, mas que não nos levava a lugar algum,
preguiçosa. Creio que foi naquele mesmo dia que o velho se esqueceu de se
esquecer e também se tornou menino.
Emerson Braga
5 comentários:
Muito tocante!
lindo Emerson! uma escrita tão intensa e carinhosa quanto a histórinha que escorre dela para nosso deleite
Sou do interior. Seu texto trouxe-me tantas recordações da infância... Medos, curiosidades, aventuras. Obrigado e parabéns, Emerson!
Texto pra lá de comovente, com um final espetacular. Parabéns, meu amigo.
Muito obrigado pela leitura, meus queridos!
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