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sábado, 20 de fevereiro de 2016

CALA A BOCA, ORESTES.

                                             (conto reconstruído pelo próprio autor)

Pelava-se Orestes de medo morrer. Na antessala do centro cirúrgico,
tinha certeza de que a súbita crise de apendicite era o sinal que
sua vez havia chegado. Já estava à mercê dos primeiros efeitos de
um coquetel intravenoso à base de uma substância rara e curiosa, que,
além de provocar um torpor delicioso, tem a propriedade de gerar um
efeito colateral esporádico, que leva o paciente a ser dominado pelas
forças do inconsciente, a ponto de dizer o que não se diz, entregar
rapaduras indigestas, entre outras saias das mais justas e indiscretas.
Foi o que aconteceu com o apavorado Orestes. Entre o grogue e lúcido,
língua enrolada e voz pastosa, foi acometido dos rompantes de afeto
extremado dos bêbados mansos.  Pediu com delicadeza que enfermeiras
e assistentes se retirassem, e agarrou a mão da mulher Leda Maria,
bradando repetidos "Eu te amo!", "Mulher da minha vida!", "Mãe 
amantíssima de meu adorável filho!", "Esteio moral de nosso santo lar!",
entre diversas baboseiras.

- Fica quietinho, Orestes. O cirurgião já vai chegar.

Quanto mais surgiam pérolas da pieguice, mais elevava o tom da voz de
baixa rotação e alto teor de sinceridade. Leda Maria, sem jeito,
passava a mão nas sobrancelhas enviesadas do marido, olhando para
os lados, vigiando a chegada de alguém.
Dos manifestos amorosos veementes passou a confessar o inconfessável.
Dessa vez, trouxe os ouvidos da mulher à sua boca torta, baixando a voz,
balbuciando um texto tão farto de franquezas e rococós, quanto capenga
em sua construção atabalhoada:

- Leda Maria, minha vida, diante da iminência do meu fim, preciso lhe 
dizer que por trás deste meu jeito austero e bonachão, provedor e dedicado, 
existe um cafajeste.

- Que cafajeste, Orestes? Você está delirando.

- É a pura verdade! Nunca deixei passar um rabo de saia que sassaricasse 
aos meus olhos, desculpe amor, preciso lhe fazer de sacerdotisa confessora 
e ao mesmo tempo vítima do meu pecado.

- Fala baixo, Orestes.

- Confesso, confesso, admito e assino com essa voz claudicante que fui com 
secretárias da firma, balconistas jeitosas, garçonetes assanhadas, recepcionistas 
simplórias, transeuntes de rebolados estonteantes, aeromoças solicitas, assistentes 
de clientes, e até, cá entre nós, enfermeiras de dentistas, formosas como estas 
que me rodeiam.

- Orestes, deixa de dizer bobagens. É tudo efeito dessa injeção que te deram.

- Meu Deus, como eu não presto! Todas caiam no meu conto de homem abandonado 
pelo destino, casado, sim, jamais neguei, mas com uma mulher entrevada 
e desenganada pela medicina. 

- Eu entrevada? Seu patife!

- Leda Maria, me perdoe, você nunca me mereceu, quantas vezes a inventei 
moribunda numa maca de UTI como esta em que me encontro, perdão Leda Maria, 
minha vidinha, por este meu vício incontrolável, que me levou a extremos da traição.

- Cala a boca, Orestes. Vou chamar a enfermeira.

- A gostosinha que me raspou os pelos? Bonitinha como aquela babá do Orestinho, 
que acusamos de ter roubado uma lata de leite condensado. Lembra dela?

- A Bernadete?! 

- Ela mesma, coitada, injustiçada. Seu crime foi ter caído nas minhas garras 
e se dado ao patrão numa noite de folga, nos bancos do Chevrolet, bem atrás da 
pracinha mal iluminada, onde horas antes, ela balançava nosso filho. Paguei uma 
fortuna para que a safadinha se calasse, sem que você nunca soubesse...

- Chega Orestes!!!

Leda Maria foi tão severa que médicos e enfermeiras apareceram às pressas.

- Chega, Orestes! Vou fingir que não ouvi nada. Doutor, enfermeira...  
levem este traste e me entreguem como o destino quiser.

E Leda Maria saiu do recinto rasgando os aventais assépticos, espargindo a
toquinha e sapatilhas pelos corredores do hospital. Encontrou o filho e futura
nora na sala de espera, onde ficou calada e circunspeta, com um olhar distante
pela janela, horas a fio, mirando as montanhas na paisagem que se apresentava
em cores de crepúsculo de verão. Até que sentiu uma mão amiga pousar sobre
seu ombro esquerdo.

- Dona Leda, foi tudo bem.  Não houve intercorrências, a anestesia já vai passar. 
Talvez ele tenha náuseas, mas não é desta vez que a senhora vai ficar viúva.

- Obrigado, Doutor.

Leda Maria não demonstrou nada além de uma formalidade bem-educada. Pediu ao filho e
à futura nora que esperassem pelo pai no quarto, que passassem a noite com ele,
deixando um pacote de biscoitos e um cheque em branco, para qualquer eventualidade.
E de lá mesmo pegou o carro, ligou o rádio bem alto e subiu a montanha cantarolando a vida.
Duas horas depois, estava no topo da serra, serpenteando por uma estradinha de pedras,
entre eucaliptos e ruídos de sapos e grilos. Era um sítio de rosas, cultivadas por
um artista plástico de nome Gregor, que entre outras manias, recebia senhoras quarentonas
bonitas para posar como modelo vivo. Nas suas obras, algumas telas de Leda Maria nua,
em posições onde a arte se confunde com o vulgar.

- Leda Maria, você por aqui, numa hora dessas? O que houve com seu marido?

- Deve estar bem. Deve ficar bem. 

E despiu-se a Gregor como se fosse em nome da arte. Naquela noite, entregou-se
ao artista, não pela primeira vez, mas pela primeira vez inteira, livre, aliviada,
feliz que só ela sabia como e porquê. Gozou em quantidade e qualidade, gozos plenos
e variados, reconfortantes e restauradores. E repetiu doses e doses madrugada adentro,
buscando o tempo perdido, despida da culpa e entregue ao inebriante elixir
da felicidade secreta.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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