Stella
nascera no circo. A mãe, uma antiga bailarina, mais bonita do que propriamente
talentosa, apaixonara-se pelo pai da menina numa das temporadas do circo na
cidade. Fugira com ele aos quinze anos, para uma união que já durava quase
vinte. O marido ensinara-lhe tudo o que ela sabia. Um ano depois, nascia Luna.
Três anos depois, chegava Stella, herdando involuntariamente o destino nômade e
o estigma de ser a filha caçula num lugar onde o estrelato estava reservado à
primeira. Os nomes das moças deixavam entrever o gosto da mãe pelo misticismo.
No fundo, Carmen queria ser cartomante, mas o marido enxergara em sua beleza o
potencial para que ela virasse a grande atração daquele circo. Luna tinha a
graça e o talento natos a uma bailarina. Seguindo os passos da mãe, ela logo se
revelou uma das maiores atrações do Grande Circo Royal, atraindo aplausos de
admiração em todos os lugares por onde o circo passava.
A pequena
Stella, frágil e tímida, fora treinada para ser apenas ajudante em atrações em
que houvesse a necessidade de um auxiliar. Nos números de mágica e na maquiagem
dos bailarinos, ela era sempre requisitada. Mas sentia que lhe faltava algo. O brilho
dos holofotes atraía-a de forma quase hipnótica, sendo esse fascínio contido
apenas pela sua timidez.
Depois de uma
temporada ruim, em que o pai teve de dispensar alguns funcionários, a situação
da menina piorou. Agora ela era também encarregada de vender balas e pipocas durante
o espetáculo, função que odiava. Apesar de tímida, ela era belíssima, e as
gracinhas dos clientes agrediam-na. No íntimo, preferia ser uma das aberrações,
que atraíam a atenção por causa de sua deformidade, a ficar à sombra da irmã,
cuja semelhança com a mãe rendera-lhe também o posto de favorita junto ao pai.
E ela, a desastrada que derrubava as pipocas que deveria vender, sentia-se, no
alto de seus quinze anos, a mais desengonçada das criaturas.
Uma vez,
pensara em fugir. A irmã rira da imaturidade de sua ideia, argumentando que o circo
já representava a fuga. Como evadir-se de algo que já contém em si o simulacro,
o palco, a ilusão? A ilusão mora dentro
de nós. Está no nosso sangue, dissera ela, na ocasião.
A cada
mudança de cidade, a cada novo acampamento, Stella sentia-se definhar. Alguns têm asas, dizia a mãe; outros, raízes. E o sonho da mãe,
realizado em um arroubo juvenil, era o pesadelo de Stella.
Apenas uma
coisa a prendia àquele circo: Rodolfo, um acrobata, mais arredio do que os
animais, mais destemido do que qualquer outro integrante daquela trupe. Seu
coração, tão livre quanto o dono, sempre estivera vazio, e talvez nesse
pormenor residisse a sua liberdade. Colecionava aventuras nos lugarejos onde o
circo passava, mas o fazia justamente porque contava com a efemeridade da
situação. Uma vez, Stella perguntara-lhe se ele não tinha vontade de se casar.
A resposta foi uma sonora gargalhada, com um leve afago em sua cabeça: meu coração é pirata, Stellinha. Nem o
atirador de facas seria capaz de feri-lo – disse ele, afastando-se após
dar-lhe um beijo fraternal na testa.
Todas as
tardes, Stella observava o árduo treino da irmã, absorvendo cada movimento,
cada detalhe de uma arte que misturava graça e precisão. Uma falha, numa fração
de segundo, poderia ser fatal. Após o fim do ensaio, num momento em que o
picadeiro ficava vazio e os artistas descansavam até a hora do espetáculo,
Stella reproduzia graciosamente os movimentos da irmã. Nesses momentos, ela
nada tinha de tímida ou de desastrada. E o fazia com mais leveza, e com mais
paixão. Não possuía a beleza da irmã, o que a fazia se encolher, envergonhada,
quando alguém a surpreendia em seus momentos de devaneio. Faltava-lhe a
consciência de que talvez se tornasse uma bailarina melhor do que a irmã jamais
fora, se lhe fosse dada uma oportunidade.
A temporada
naquela cidade vinha sendo uma das melhores que o circo já havia conhecido.
Todas as noites, os ingressos eram integralmente vendidos, levando-os a
respirar, aliviados. Se dependesse daquela temporada, poderiam pagar os
artistas, que estavam sem receber havia três meses, e comprar um novo veículo
para o grupo.
Stella
aproveitou a tranquilidade do horário após o almoço e foi conversar com madame
Soraya. A cartomante do circo tinha a fama de embusteira, mas conhecia bem a
alma humana, e sempre dizia aquilo que seus consulentes queriam ouvir, o que
lhe assegurava o emprego no circo e polpudas gorjetas a cada noite.
O ruído das
cortinas de contas fê-la erguer os olhos.
– Olá, criança. Perdida por aqui, na tenda
de Madame Soraya? – o tom da cigana era tão benevolente quanto o dos
demais, e isso irritava Stella. Mas ela ouvira uma história de que a cartomante
havia sido namorada de seu pai antes de ele conhecer Carmen e se apaixonar por
ela, e, ainda segundo os rumores, a mãe só não exigira a demissão da cartomante,
descendente de ciganos, porque temia que ela a amaldiçoasse. O pai, de resto um
coração mole que não queria deixar a antiga namorada à míngua, resolveu a
situação mantendo-a no circo. Seu trailer
era o mais modesto, e o mais afastado, mas ele a via mais como vítima do que
como ameaça, e, de mais a mais, ela fazia sucesso com os clientes e, com sua
gorjeta, era uma das que menos reclamavam do salário atrasado.
– Sente aqui, meu anjo. Você quer fazer uma
consulta? Quer saber o que o futuro lhe reserva? – seu tom continha um leve
sarcasmo, como se a insólita visita estabelecesse uma cumplicidade entre si e a
menina, de resto filha de seu maior desafeto. O amor pelo pai da menina havia
desaparecido; a mágoa, não. Salivou, no gosto amargo do rancor que alimentava
havia vinte anos.
Stella
sentou-se defronte à mulher. O lenço vermelho, saia florida, a maquiagem
carregada, nada daquilo era encenação. O olhar misterioso, perscrutador,
daquela mulher era real. Todos a tomavam por enganadora, mas Stella sentiu um
arrepio percorrer-lhe o corpo quando a vidente pegou em sua mão, puxando-a para
perto de si.
– Deixe ver... Você vive um grande dilema,
criança. Essa aventura não é para você. Seu mundo é o dos castelos, não o das
tendas. Você precisa de paz, algo que o mundo do circo não lhe oferece. Alguns
precisam de aventura; outros, de sossego. Mas eu também vejo que você tem uma
âncora aqui. Mas ele sempre está longe de você, não é? – as palavras da
mulher foram acompanhadas de um olhar que parecia enxergar a alma da menina.
Stella
recuou, instintivamente.
– Não, não é nada disso – desconversou,
fingindo naturalidade. – Só queria saber
se as coisas vão melhorar. Se esta cidade vai ser boa para nós.
– Esta cidade vai mudar a sua vida, criança –
a mulher jogava um baralho de cartas gastas, falando antes mesmo de desvirá-las
por completo. O cigarro pendia de um canto da boca, dando-lhe um ar meio
vulgar.
– Como assim? Eu vou conseguir mudar de
vida? Ou estou destinada a morrer neste circo?
Nesse
momento, a cartomante assumiu um ar solene. Largando as cartas, começou a
acariciar uma bola de cristal nebulosa. Parecia de fato absorta em algo que vira.
Sua atuação era impecável, embora a falta de caráter não excluísse algum
talento real para o ocultismo.
– É verdade que você e meu pai eram
namorados antes de ele conhecer minha mãe? – perguntou a menina,
arrependendo-se em seguida, ao ver a expressão da cigana.
– Esta consulta é sobre você, não sobre mim,
criança. Não me distraia com tolices. – o tom da mulher continha uma indisfarçável
amargura que até a menina, apesar de sua pouca idade, foi capaz de perceber. – Isso foi há muito, muito tempo. Quase
outra vida. Venha. Dê-me novamente sua mão. – continuou ela, secamente.
A contragosto,
Stella levantou-se e aproximou-se da mulher, estendendo a mão direita.
– A outra, criança. – enquanto dizia
isso, pegou a outra mão da menina, recuando, horrorizada.
– Cuidado, criança. Muito cuidado. – Stella detestava quando a vidente a chamava assim,
mas não esboçou qualquer reação. O tom da mulher trouxe-lhe novo arrepio.
– Por que você demorou tanto a me procurar?
Medo de Madame Soraya? – a cigana jogou a cabeça pra trás, em um ar de
desafio.
– Não... É que eu me sinto meio perdida.
Nunca saí daqui.
– E nunca esteve aqui de todo, não é? Não
posso lhe dizer muita coisa. Só que a sua vida mudará em breve. Seu brilho é
diferente. Você é como uma borboleta, mas todos só enxergam a lagarta. Mas isso
irá mudar. A hora de seu voo está próxima. – disse ela, encerrando a
conversa.
Em silêncio,
um tanto arrependida por ter ido até ali sem obter qualquer informação precisa,
Stella voltou ao seu trailer, com o
cuidado de não ser vista. Não sabia do que a mãe seria capaz se soubesse que
ela havia cruzado os limites permitidos. Numa mistura de medo e respeito, a mãe
não admitia que as filhas tivessem contato com a cigana, e a última coisa de
que Stella precisava era que a mãe se aborrecesse com ela.
Luna treinava
para o espetáculo da noite. Sua beleza fazia com que qualquer imperfeição nos
movimentos passasse despercebida. Stella, contudo, possuía um olhar quase
técnico, e detectava algumas falhas nos movimentos da irmã, mas jamais diria
nada. Quem era ela para criticar algo em Luna? Uma vendedora de pipocas?
E foi
justamente um movimento errado, que Stella sempre observava no mesmo ponto da
coreografia, o que fez a irmã cair de mau jeito, torcendo o pé. Não parecia nada
grave, mas que provavelmente a deixaria fora do espetáculo por duas semanas.
– Logo agora, que estamos com a casa cheia,
perdemos nosso melhor número! – – o pai passava a mão pela cabeça,
transtornado.
– Nossa filha se machuca, e você se preocupa
com o espetáculo? – gritou a mãe.
– Não é nada demais. Não é, filha? –
disse o pai, agora preocupado.
Luna sacudiu
a cabeça e olhou o pé, apreensiva.
– Acho melhor levá-la a um médico. Somos treinados para cair, mas pode haver
algum dano maior. É melhor não
arriscar. – a voz de Rodolfo se fez ouvir.
– Não... É... Sim. Você pode fazer isso,
Rodolfo? Tenho de pensar como vamos fazer esta noite. E nas outras...
– Eu faço o número dela! – a voz de
Stella assumiu um tom que fez com que todos se virassem.
– Você, filha? – o pai deu uma
gargalhada. – Mas você...
– Tenho tudo para ser mais do que uma
vendedora de balas, pai. E sempre treino o número da Luna. Conheço cada passo
da coreografia. Só até ela ficar boa...
– Não sei, não sei... – o tom do pai
mesclava prudência e desconfiança. – Por que
você não nos mostra o que sabe fazer?
Stella ligou
o som, e começou a dançar. Aos poucos, os integrantes do circo aproximavam-se,
surpresos. A menina havia crescido, e sabia fazer um bom trabalho.
– Acho que já posso me aposentar. – Luna
parecia de fato animada com o talento da irmã.
– Vamos fazer assim, então: enquanto a Luna
não puder atuar, você a substitui. – disse o pai, aliviado.
– Depois... Volto a vender bala, né? – o
tom de Stella não disfarçava a amargura.
– Depois vemos como fica, Stellinha. –
disse Rodolfo, tentando contemporizar. O
importante é que agora o problema está resolvido. E Luna poderá descansar até
ficar bem.
A cartomante
ouvia, temerosa. O casulo começava a se romper.
Stella passou
o resto do dia ensaiando. Por mais que conhecesse a coreografia de olhos
fechados, não podia se dar ao luxo de errar. Os olhares estariam centrados
nela, e qualquer descuido confirmaria o seu destino de coadjuvante. O brilho
naquele circo era destinado a Luna. E ela, embora não quisesse competir com a
irmã, também desejava seu momento de estrelato. Isso poderia ser decisivo para
que Rodolfo a notasse.
Chegou,
enfim, o momento da estreia. A mãe parecia emocionada, e até o pai, apesar de
sua indisfarçável predileção por Luna, sorria, orgulhoso.
O picadeiro
estava todo iluminado, e o calor das luzes aquecia a alma da moça. Seu nervosismo,
aliado ao calor, fazia com que a maquiagem começasse a derreter. Nada que
comprometesse o brilho daquela noite. Lembrou-se, por um momento, das palavras
da cartomante: você é uma borboleta. Os
outros só veem a lagarta.
Hoje seria
diferente. A primeira parte da coreografia foi executada de forma magistral, e
os aplausos a ela destinados pareceram ainda mais efusivos do que os que a irmã
estava habituada a receber.
A segunda parte
da coreografia era um pouco mais elaborada, e envolvia um plano um pouco mais
alto, e foi justamente nesse ponto que a irmã se machucara. Teria de ser
cautelosa. Os tambores começaram a rufar.
Respirando
fundo, preparou-se para subir ao trecho de onde a irmã costumava realizar
aquela parte. Procurando Rodolfo com os olhos, encontrou-o ao lado da irmã.
Atencioso, ajudava-a a se sentar em um lugar que permitia a visão do
espetáculo.
Stella
subiu até o ponto desejado. Buscando novamente Rodolfo com o olhar, encontrou-o
cochichando algo no ouvido da irmã, que ria. Tolos, pensou. Nem prestavam atenção nela. Ela lhes mostraria.
Continuou a
subir, para executar o movimento de um ponto ainda mais alto. Provaria a todos
que era melhor do que Luna. Que poderia ser a estrela daquele espetáculo. Que
fora subestimada a vida inteira.
Alguns
integrantes da equipe cochichavam, apreensivos. Fazer o número daquela altura
era uma loucura, pois o risco era muito maior. Nem Luna, com seus anos de
experiência, jamais tentara aquilo. Os tambores continuavam a rufar.
Seus
pensamentos foram interrompidos pela visão do beijo que Luna e Rodolfo trocavam
naquele momento. Nada mais fazia sentido. Muito mais do que a preferência dos
pais, Luna roubara-lhe também o amor de Rodolfo. O amor que ela nunca teria a
chance de conquistar.
De repente, as
palavras cifradas da cigana ganharam outro sentido: sua vida irá mudar... A hora
de seu voo está próxima. O rufar de tambores cessou. Mirando o público,
respirou fundo antes de se atirar, em seu primeiro e único voo-solo, como a
borboleta-estrela daquela noite.
3 comentários:
Eu conheço esse conto. Mas é sempre bom dizer que ele é intenso e bonito. Ah, essa alma humana!
Ah, as paixões, sempre elas... Obrigada pela leitura e pelo carinho.
Belo conto.
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