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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Um conto de outros tempos




Havia dias em que as ruas empapavam. Nesses dias, os pés da gente destoavam ainda mais dos pés dos meninos que iam pela mão das criadas a caminho da escola.
Os pés da gente a confundirem-se com a lama.
Os pés da gente sem nunca terem sido calçados.
A minha mãe dizia: um dia, pela feira, terás umas botas. Mas as feiras passavam, umas a seguir a outras, e passaram os natais, e eu descalço. A minha irmã calçou-se, que ser criada de dentro a isso a obrigava, ainda que dissesse: dói tanto andar com sapatos. E a minha mãe gritava-lhe: tu habitua esses pés, criatura, a olhar os seus próprios pés grossos e gretados, calejados de andarem uma vida inteira despojados de calçado.
Éramos pobres e nem éramos desses que vivem na miragem duma esmola, moeda ou côdea, naco de carne de uns dias, uma fruta pisada ou uma peça de roupa, ceroulas já muito poídas ou um casaco desbotado e roído das traças. A minha mãe dizia que não esmolássemos, que mantivéssemos o preceito mesmo de ser pobre. Que fizéssemos como ela que tantas vezes enganava o estômago com a saliva que ainda lhe sobrava. 
Isso, ela nunca nos disse, mas eu soube, muito mais tarde deste tempo de andar descalço.
A mãe da gente sabia que não há esmola que anoiteça outras faltas e, essas, ela não queria que nunca nos faltassem.
Antes descalços que desonestos, dizia-nos ela, sabendo no entanto que a honra não consola estômagos esfaimados, nem calça pés descalços.
A minha mãe trabalhando onde calhava e era na lota como a pegar na enxada ou sentada debulhando milho ou amêndoa ou o que fosse. E no descabeço do peixe se dava que a chamassem, e era raro, como era raro que trouxesse peixe para o almoço ou para a ceia, que nem sempre lhe davam. Mas naquele dia ela trouxe umas botas.
Nem lhas tinham dado. 
Estavam, contou ela, assim, rotas na sola e sem cordões, em cima dum valado. 
Tinha-as encontrado e trouxera-as escondidas na roda da saia, a medo, silenciando que as trazia não fosse vir-lhe no encalço o mendigo que decerto as esquecera ao som de um vinho que lhe tivessem dado e lhe caíra na fraqueza: beba, beba que aquece, ter-lhe-ia dito alguma rapariga, dessas que ajudavam na cozinha das casas grandes.
A minha mãe a contar-nos aquilo num desassossego.
Era um par de botas que se adivinhava que tinham sido umas botas elegantes, e passámos o serão experimentando a que pé melhor se moldaria o cabedal já murcho.
Mas as botas eram demasiado estreitas ou demasiado curtas ou demasiado uma coisa e outra para os pés de cada um da gente os três sentados em roda delas e em redor do fogo que a minha mãe fazia num canto da casa.
Os pés da gente habituados a crescerem sem peias, e as botas a rirem-se, ou elas chorariam de nos ver tão desiludidos.
A minha mãe choramingou que pena, que mais valia que nem as tivesse trazido, e dependurou as duas botas num gancho ao lado do lume.
Talvez ela pensasse em dá-las a algum pedinte, ou nem ela as terá dependurado senão por enfeite, que aquele vermelho, aquele tom ainda berrante se bem que desbotado, brilhava ao calhar do lume. Pareciam, assim dependuradas, uma candeia. Ou poderiam semelhar um quadro, mas eu ainda nem sabia que o par de botas poderia ser comparado com uma obra de arte. Eu a olhar o par de botas quase tão vermelhas como o lume. Teriam pertencido a alguém do circo, perguntava-me, e terei adormecido e terei sonhado que era eu correndo pela aldeia com os pés calçados. E nem eram os meus pés tão só calçados, eram aquelas botas encarnadas que esvoaçavam e me levavam pelos montes que ficavam a separar a aldeia do resto do mundo, que minha mãe dizia tantas vezes: um dia, calças umas botas, Nelinho, e vais correr mundo.
Terei, assim, adormecido em frente do lume, as botas encarnadas balançando ao tremeluzir do fogo. Não me lembro como foi, mas sei, disso tenho eu certeza, que a minha mãe deixou o par de botas dependurado e que as botas tremeluziam tons de vermelho e rosa, e até amarelos fortes, de cada vez que um da gente se movia a virar um pedaço de batata que assava nas brasas.
Ao outro dia, a minha mãe chamou-me e voltou a chamar-me.
Nelinho, hoje é o teu dia de ir à escola, filho.
E vestiu-me uma roupa lavada e bruniu-me o cabelo com pente e água. E choramingava-se, que ela gostaria de me ver calçado, mas não tinha tido modo de meter-me os pés que não fosse naquele pedaço de tecido que ela mesmo cosera numa velha e usada sola de borracha.
Foi logo pela manhãzinha.
Mal entrei na sala de aula, rolando os pés mal calçados pelo soalho, a senhora professora, baixinha e roliça, olhou de alto a baixo o meu metro e meio, e disse-me que fosse “lá dentro”. Nem me perguntou o nome. Tinha cara de quem está doente, ainda mais enrolada naquela capinha de malha e tossicando. Disse apenas: tu e tu e tu vão lá dentro, e espetava o dedo indicador da mão direita a assinalar cada um dos meninos que, como eu, entravam na sala mal calçados ou descalços.
E éramos mais de meia dúzia a deixar a sala onde os outros meninos já se sentavam, dois a dois, nas carteiras escuras. Fomos “lá dentro” que era onde a senhora professora guardava a bata branca que vestia por cima de vestidinhos cingidos ao corpo com botões miúdos. Era onde, também, guardava a capinha que ela mesmo fizera em tricô de duas agulhas. Mas, isso, eu ainda não sabia, e “lá dentro” era apenas outra sala onde uma rapariga gorda e feia me perguntou com voz amável: como te chamas? e depois que eu lhe respondi em tom sumido: Manuel Dionísio, ela colocou um papel grosso em cima do ladrilho que era o chão da sala, e escreveu, muito perto da bordinha da folha, os dois nomes que eu lhe tinha dito.
Para fazer isso, a rapariga precisou agachar-se e eu reparei nos seios que ela deixava ver, apertados no decote da blusa. Reparei neles e fixei-os a sentir que não devia, e terá sido de me ver olhá-los que ela puxou tão asperamente a canela da minha perna esquerda.
 Coloca aqui o pé, menino, disse ela, e segurava-me a perna com dedos rijos e húmidos, depois de me descalçar o pedaço informe que a minha mãe ajeitara em modo de sapato.
Muito áspero e encardido do hábito de andar sempre descalço, lá ficou o meu pé esquerdo assente sobre a folha de papel pardo.
E para desviar os olhos do decote, soletrei, mentalmente os nomes que a rapariga tinha escrito na bordinha da folha que eu mais sabia de escrita e de leitura eram tão só aquelas duas palavras: Manuel Dionísio. Mas logo me voltaram os olhos para o redondo dos seios que espreitavam da blusa de flores miudinhas, brancas num fundo azul muito escuro, enquanto a rapariga passava, em volta da sola, calejada e negra, do meu pé de seis anos, a ponta grossa e romba dum lápis encarnado.
Riscava por troços e levantava o lápis, e cada troço que fazia era um pedaço do que ficaria desenhado na folha: a forma, que me pareceu avantajada, de cada um dos meus pés. E eu a constranger-me, eu morto de vergonha, ciente que seria de lhe ter olhado os seios e estar notando os bicos túmidos a parecerem saltar através do tecido. Ou seria outra a minha vergonha, ou seriam as duas e eu, uma delas ainda nem sabia. E a rapariga a dizer-me, quase num sorriso: no dia de todos os santos já as estreias. Ela que tinha repetido cada um dos gestos com o meu pé direito, a renovar as cócegas que eu sentia com o correr do lápis em volta da sola.
No dia de todos os santos já as estreias.
A minha mãe tinha dito e repetido: no início de Outubro, vais à escola, Nelinho. E explicava: vais ainda com seis anos que os sete, só os fazes em Novembro, no dia de todos os santos.
Ela tinha dito, e eu, ali, entre duas vergonhas, uma de que ainda não sabia e outra de que pressentia o dano, fazia contas a saber quanto demoraria para calçar aquelas botas.
A minha mãe, tinha-se repetido, sim, a avisar-me, e seria para que eu me fosse habituando. E ouvindo chamar-me daquele modo, os dois nomes entrelaçados: Manuel Dionísio, eu desconfiava que não era coisa boa, isso, de ir à escola. Ou seria coisa de grande importância que Manuel Dionísio a minha mãe só me chamava em casos como tinha sido quando o Senhor Guarda Antunes tropeçou nas pedras. Eu tinha colocado um montinho em forma de pirâmide bem no meio da rua: estava a construir uma cidade e um castelo e precisava delas; tinha saído dali a buscar mais algumas, quando o guarda Antunes desceu a rua encavalitado na sua bicicleta e desfez o castelo que eu tinha construído, pedra sobre pedra, com desvelo. O guarda estatelou-se, esfolou os cotovelos e o nariz, e espalhou os papéis que trazia para entregar no Posto.
Foi a primeira vez que ouvi a minha mãe a falar comigo daquele modo: Manuel Dionísio, olha o que fizeste; e Manuel Dionísio para aqui e Manuel Dionísio para ali como se eu nem fosse seu filho. E nem as minhas lágrimas a demoverem de me chamar daquele modo, eu que chorava por sentir que ela já não me queria como filho e não pelo que ela e o senhor guarda guerreavam. Manuel Dionísio em vez de Nelinho, onde já se vira. E eu soluçava a pedir desculpas dum mal que nem sabia pois que tinha sido o senhor guarda quem estragara o meu castelo. Ele era quem me devia desculpas e não o contrário.
Foi nesse dia que aprendi que o meu nome inteiro, assim soletrado, cada sílaba bem pronunciada na voz da minha mãe, era sinal de grande ocasião ou de tragédia.
O meu nome inteiro que era, apenas, Manuel Dionísio, e não meia dúzia de apelidos como tinham outros meninos que na escola demorariam uma eternidade a preencher o cabeçalho nas folhas de prova.
Naquele primeiro dia, eu apenas soube que ia ter umas botas.
Tinham levado os moldes como explicara a rapariga que era gorda e feia, mas tinha uma voz doce: levo os moldes e assim o sapateiro sabe o tamanho das botas, explicara ela aos meninos que, como eu, estavam ali descalços ou mal calçados.
Nesse primeiro dia e nos outros que se seguiram, fiquei sentado na carteira da frente ao lado do Francisquinho, um desses que tinham muitos apelidos, e só pensava em como seriam as minhas botas novas, de que cor e se teriam ilhoses.
Eu a sonhar dia e noite com a cor e a forma que teriam as botas, nunca disse: mãe, vão fazer-me umas botas. Nunca lhe disse no receio que a minha mãe, sabendo, interferisse, que ela dissesse fosse o que fosse que quebrasse o encanto que tinha sido a voz da rapariga gorda e desengraçada a dizer a todos como se me dissesse ao ouvido: no dia de todos os santos já as estreiam.
Mas a vida da gente tem acasos, descaminhos, sobressaltos. Nada, nem se somos ainda meninos, cola com os sonhos que temos.
Foi assim que das botas fiz apenas os moldes.
No dia mesmo em que cheguei da escola, ainda descalço, a minha disse: vamos para a cidade que eu vou servir na casa duns senhores.
E fomos.  
E um dia iria calçar sapatos de cabedal com protectores metálicos nos contrafortes, mas fiquei sempre sonhando com as botas de que nem soube a cor.
Ainda hoje as sonho.



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1 comentários:

Texto extremamente imagético... Quase podemos sentir desde os pés feridos e enlameados às lembranças pungentes, descalças. Um texto que emociona e muito nos diz sobre a dureza que é a vida daqueles que são cotidianamente pisoteados pelos que usam sapatos caros... Parabéns!

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