O
primeiro encontro foi como uma caixa de rebuçados. Era o tempo dos
rebuçados e dos berlindes. Mas também de uma das primeiras
responsabilidades: a escola.
Nos dias de primavera, Orlando, de botas
com sola de borracha feitas no sapateiro, palmilhava bem cedo os três
quilómetros do caminho entre muros que separava a queijeira, onde
morava com a avó, da escola da aldeia, cruzando-se com carros de
bois, grupos de mulheres a caminho das hortas, um rebanho a
atravessar de um terreno para outro. Se estava frio, apressava o
passo a contornar uma ou outra poça de água, mala com cadernos a
tiracolo, uma mão a aquecer-se no bolso, a outra a pegar no
cabazinho da merenda. Daí a pouco, as letras, as contas, as
brincadeiras de recreio e o almoço debaixo de uma olaia, com os
outros dois miúdos que também vinham dos campos.
No regresso, o
conforto do calor e da falta de pressa convidavam-no a alongar-se em
observações da natureza: o lagarto verde esparramado ao sol que,
não conseguindo intimidá-lo abrindo a boca vermelha, se esgueirava
para um buraco das paredes; o rendilhado de alguns penedos; as
poupas, os cucos, os pintassilgos. E a estranheza do mundo do
tic-tic-tic ritmado dos canteiros, alguns bem jovens, em alguma das
pedreiras adjacentes ao caminho. Um mundo que não era de rebuçados.
Um dia encontrou vinte e cinco tostões no recinto da romaria que o
caminho atravessava. Rapidamente se esfumaram em rebuçados
embrulhados em estampas de jogadores de futebol.
De inverno, a ida
para a escola era mais monótona e mais simples. Era só atravessar o
casario, desde a casa da avó, na aldeia. No regresso, a brincadeira
com a restante criançada nos quintais e nos casarões familiares. Ao domingo,
catequese à tarde e talvez apanhar moedas pretas e rebuçados
lançados de alguma janela ou varanda no fim de um batizado. Os dias
corriam sem preocupações, com pouca relação uns com os outros. E,
de repente…
O
primeiro encontro com ela foi como receber uma caixa de rebuçados. A
festa era de carnes, da matança do porco e respetiva comezaina. A
família alargada habitual estava reunida em casa de um tio por este
motivo. Segurar, matar, limpar e desmanchar um porco exigia o
concurso de vários homens. E o trabalho de lavar as tripas, preparar
os recheios e encher com eles as farinheiras, as morcelas e as
chouriças exigia o concurso de várias mulheres. Para também
prepararem o banquete para todos aqueles adultos e respetiva
miudagem.
Daquela
vez, o tio convidou também uma família colateral, que não
costumava estar presente neste acontecimento anual em casa de cada
tio. E ela apareceu, linda e discreta. Devia ter mais um ano do que
Orlando e era muito diferente das outras meninas que orbitavam o
mundo dele. As outras eram como que irmãs, na proximidade de
parentesco e nas brincadeiras estouvadas. Delfina — esse o seu nome —,
não. Ela era outro mundo. Um mundo de arranjo e delicadeza.
Os cabelos — oh, os cabelos —, caíam penteados, lisos, a terminar numa
volta, sobre os ombros. Os olhos seriam castanhos como os cabelos?
Eram suaves e sorriam. A compostura do vestido de golinha, apertado
por um cinto do mesmo tecido, também tocou Orlando. E a graça e
simpatia que irradiava deslumbraram-no durante toda a tarde.
Ninguém
faz planos para se apaixonar, muito menos um menino de oito ou nove
anos. Sabe que os homens e as mulheres se casam, mas não sabe muito
bem por quê. E calcula que um dia também casará. Talvez por gostar
de alguém.
A única experiência que Orlando tivera nesse campo não
correra bem. A inconfidência de uma tia, à janela, quando passava Acilda, uma morena de trança, denunciara o seu enlevo encoberto: — Olha, vai ali a tua esposada! A consequência foi a humilhação
de um “Querias-me?! Pff…” que a morena lhe lançou quando o
encontrou a caminho da escola e o deixou infeliz, a suspeitar que
casar, ainda que gostando, era mais difícil do que parecia.
Orlando
não falou a ninguém, sobretudo à desbocada tia, da perturbação
que a recente conhecida lhe provocara. Não sabia dizer se era amor —
aquilo de que os adultos falavam — o que sentia. Não sabia dar-lhe
um nome. Sentia, sim, uma alegria íntima e serena, que não se
manifestava por cabriolas, mas também uma inquietação, um temor de
não conseguir aprofundar aquela afeição. Sentia ternura e um
querer bem que não sentira, talvez, por ninguém.
Nas suas orações
antes de adormecer, passou a lembrar e interceder por aquela criatura
doce e bela por quem estremecia. O máximo de harmonia com ela
vislumbrava-o numa atualização da estampa pendurada por cima da sua
cama: ambos de mão dada na travessia de uma ponte frágil sobre um
rio caudaloso, mas protegidos por um anjo-da-guarda.
Por
aqueles dias, Orlando recebeu uns três ou quatro rebuçados. Logo
decidiu que um seria para ela, para lhe oferecer, como prova de
bem-querer. Por uma lamentável desatenção das forças celestes,
porém, Delfina adoeceu. Orlando, de rebuçado no bolso, não
encontrou a estremecida do seu coração nos dois dias seguintes.
No
terceiro dia, no regresso à escola depois de almoço, tão alheado
ia que automaticamente fez o que não queria: desembrulhou o rebuçado
e meteu-o na boca. Chegou a sentir-lhe o doce. Espantado, desagradado
consigo próprio, retirou-o da boca, como blasfémia. O rebuçado era
para ela, estava prometido em intenção. Tinha de lho entregar,
ainda que lhe apetecesse continuar a saboreá-lo.
Resolveu entrar na venda do pai de Delfina e confiar-lhe o rebuçado para ele lho
entregar. Temia, no entanto, que algum cliente percebesse o
enamoramento no seu gesto e fizesse algum comentário que o
envergonhasse. Ganhou coragem e entrou, mas a venda estava vazia.
Mesmo o pai de Delfina devia estar lá para dentro. Pensou chamá-lo,
mas isso já ia além da sua coragem.
Deixou o rebuçado, embrulhado e um pouco agarrado ao papel, em cima do balcão de mármore e saiu
em direção à escola. Não era isto que tinha idealizado, mas
cumprira a promessa, tanto quanto conseguira.
No regresso, entrou na venda, mais uma vez deserta. O balcão estava limpo. Nem sinal do
pequeno volume roliço do rebuçado. Teria Delfina chegado a
recebê-lo? Pouco provável, concedeu. Com certeza que o pai o tinha
deitado fora, sem suspeitar da sua importância.
Quando
voltou a vê-la, já tinha passado uma semana ou duas e o
enamoramento, por falta de alimento, murchara. Casar devia ser muito
mais difícil do que parecia. Era o tempo dos rebuçados e dos
berlindes. O que parecia importante num dia esquecia-se alegremente
no dia seguinte. O futuro é que traria a compreensão da importância
de cada coisa. Talvez.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
do filme Aniki Bóbó de Manoel de Oliveira
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(Este
conto obteve o
5º
lugar, na
categoria Conto, no
I Prémio Literário Pescaria (Brasil), de 2015.)
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