Eu podia sair e andar alguns passos à direita ou à esquerda e bater em algumas portas e encarar alguns rostos surpresos e abrir a boca e contar que hoje lá em casa não tem migalha. Eu podia falar da fome que queima. Da insônia. Da náusea. E da ironia dessa náusea que brota da falta. Falar da outra fome, a que precisa mastigar afetos. Da outra ânsia, a que precisa vomitar afetos. Eu podia falar como é raso o buraco que eu chamo de abismo; e que ainda assim é abismo. Mas, antes, eu preciso de pão. O de fermento. Porque hoje, lá em casa, não tem migalha. Tem ladainha. Falta emprego, dinheiro, coragem, gás, coragem, sal, coragem, arroz, coragem. E pão. Quando eu era pequena, minha mãe dizia que água e pão a gente sempre tem. Não é verdade. Hoje, não tem pão. Tem prato, mesa, geladeira. Tudo vazio. Um vazio servido no prato, na mesa, no estômago, na cabeça, nos olhos. Vazio de pão dói mais.
Alguns passos. À direita, à esquerda. Tanto faz. Tanto faz a porta, o rosto, o estranho, o amigo. Eu não vou pedir. Fico aqui, sem migalha, mas não peço. Nada. A ninguém. Fico aqui e choro sem fazer cena, e sinto as unhas latejando, e vomito, e tonteio, e desmaio, e levanto. E deixo tudo começar outra vez. E espero a inanição, a morte. Mas não peço. Nem à direita, nem à esquerda. Que não dou a ninguém o direito de negar. De me negar. De se negar a mim. Que não dou a Deus o direito de me dizer que fome e piedade é o que tem para hoje.
Todas as portas estão vivas. Eu sei. Eu escuto as vozes, as gargalhadas, o sexo, os aparelhos de TV ligados na novela das sete. Escuto do lado de cá. E aí a mão se fecha para bater na madeira que me separa do estardalhaço das crianças, das lambidas dos cães. Mas os pés recuam. Obedientes, altivos, enfraquecidos. A cabeça recua. E impede a mão fechada do horror da piedade. Daqueles olhos que seriam, primeiro, incrédulos; dos pensamentos que seriam, em seguida, dúvidas sensatas: quem é você? A louca que incomoda, a vizinha desconhecida, a preguiçosa que não procura emprego, a filha sem mãe, a mulher sem marido, a amiga sem amigos. E, então, a compaixão, o dó, o acolhimento, a compreensão, a mão entre as mãos, o conselho, o me conta a sua história, o coitada de você, a humilhação. O horror da maldita piedade. Que depois despreza. Que depois escarnece. Que depois aprisiona. Que depois abusa. Que depois rejeita, afasta, repele, foge, se esconde, evita, aborta.
Eu podia sair e andar alguns passos, bater em algumas portas; em todas elas. E pedir um pão. Mas eu não vou. Eu não peço. Eu não mendigo. Eu não estendo a mão. Nem hoje que a morte me estupra. Eu morro. Mas morro sem bater.
11 comentários:
obrigada Cinthia você com a sua escrita cada vez mais enxuta!!
se dissesse brilhante eu nem mentia, mas este testemunho não me merece que eu diga apenas isso e nem diga sequer isso, que este é grito verdadeiro e o que eu deveria (devo) é buscar aonde se acocora e dizer : eu oiço!
Sempre textos de profunda realidade, densos, para reflexões profundas...
Obrigada,Fátima e Van!
Obrigada,Fátima e Van!
Nem vou falar da sua escrita, Cinthia, sobre ela você sabe o que eu penso. Mas as mensagem desse texto faz doer o coração. É um grito que ecoa pelo mundo, por esse mundo surdo e desatento. Parabéns, querida.
A repetição sem emenda apesar dos pontos parece sutura feita sem anestesia... Texto maravilhoso, o prazer vem de "como foi escrito" nem precisava dizer, o conteúdo/mensagem está na esquina... Parabéns Cinthia.
Isso aí! Nem à direita, nem à esquerda...!
Eu bato... palmas para sua escrita. (Gina Girão)
Cecilia, obrigada! <3
Baltazar, muito bom ler seu comentário! Obrigada!
Cris, é isso aí. Há opção!
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