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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Fera ferida

Esbarrou sem querer quando tentava chegar até a pia para lavar a xícara suja de café com leite e poft, veio ao chão com água quente e tudo a jarra elétrica da redação, comprada com a vaquinha dos funcionários no último Natal. O tombo quebrou a alça e rachou a base do suporte, deu perda total. Roberta ficou arrasada. Que uma jarra elétrica não era nada, podia repor o treco na primeira ida ao Chuí, mas derrubar aquilo daquela maneira não era descuido e sim largura. Era a terceira coisa que suas ancas levavam de arrasto nesta semana. Precisava perder peso para voltar a caber com folga nos corredores apertados das instalações do jornal, em especial no vão da cozinha, entre os armários de um lado e o fogão e a geladeira do outro. O pessoal reclamou que não ia ter água quente aquele dia, pois o chefe não tinha pedido a troca do botijão de gás ainda. Nada de café, então. 

- Gente, eu trago uma nova na segunda-feira. Prometo.

Silêncio na sala e olhares trocados aqui e ali por cima de óculos de armações grossas. O microondas aguardava reparo há cinco meses. Se das cabeças dos colegas brotassem balões gráficos, Roberta leria pensamentos agressivos, debochados, desnecessários, tipo “tinha que ser essa balofa estabanada” ou “sempre na cozinha, essa gorda”. Mas naquela sexta sem graça não saía nada daquela redação, nem notícia que prestasse, mil vivas às assessorias de imprensa e suas enxurradas de releases. 

Caminhou até sua mesa de trabalho. Na passada, Renata fez psiu e convidou:

- Vem comigo no Chuí amanhã. Igual a essa jarra só tem lá. Te pego em casa às sete, topas? Vai ser legal, mulher. Eu iria sozinha, cantando alto todas as músicas da Bethânia...

Roberta, que nem gosta de Bethânia, só ouviu a parte da “jarra só tem lá” e disse sim. Sim, sim, sim, estaria na portaria às sete da manhã em ponto. Bater perna em free shop jamais seria sacrifício, mesmo quando não tivesse um pila para gastar, praticamente o caso. Na volta para a casa, entrou na padaria e fez um pequeno estoque para a viagem. Com alma de rata, só suportaria as quase quatro horas de viagem se levasse algo para roer. Biscoitos de maisena, bala de goma, amendoim torrado, deve ser suficiente, pensou, colocando sobre o balcão os itens que mais pareciam combinar com chimarrão. Pagou e foi.

Na manhã seguinte, oito e trinta e dois, nem sinal da Renata. Celular na caixa de mensagem. A colega teria desistido de buscá-la? Teria esquecido dela? Olhava para o relógio da portaria quando ouviu três buzinadas curtas, era Renata, enfim.

- Vem, mulher! Me perdi dormindo. Pula para cá.

Roberta entrou, afivelou o cinto e afundou no banco, sorridente. Rê, como chamava a colega, contava piadas hilárias, seria divertido dividir o sábado com ela. Pegou a agenda, a caneta, e começou a lista enquanto a outra abastecia o carro no posto: além da jarra, alfajores, perfume, chá granulado, Pringles e uns três vidros daquele dulce de leche absurdo de bom. Rê deu o play no rádio. Depois de duas horas e meia de distância da cidade, Rô, como a colega a chamava, também cantava alto com Rê todas as músicas da Betânia. Acabei com tudo, escapei com vida, tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saíííídaaa. Não chegaram a repetir pela oitava vez o verso seguinte. Estrondo, o mundo ao contrário, o carro atravessado no pasto. Atordoada, Roberta desprendeu seu cinto e o de Renata, que gritava palavrões e batia os pulsos no volante, histérica, mas de que cu saiu essa merda de capivara era o mais brando que Rê conseguia articular. Forçou a porta para abrir e saiu do carro, olhou as manchas de sangue na rodovia e o rastro dos pneus no asfalto até onde haviam parado de capotar. Milagre, apenas uns arranhões pelos braços e esfolados no queixo. A frente da caminhonete detonada, pedaços do bicho entre a roda esquerda e a lataria.

- Rê, te acalma e aciona o seguro. Se tu me deres o número eu mesma ligo.

Renata não atinava, não ouvia, não tinha mais repertório de bandalheira para berrar. Roberta chorava e pensava que o conjunto de pequenas tragédias que vinham acontecendo com ela só podia ser macumba. E a Bethânia, insistente e sobrevivente, repetia rouca um trecho arranhado do cd: não vou mudar esse caso não tem solução sou fera ferida no corpo na alma e no coração. Não vou mudar esse caso não tem solução sou fera ferida no corpo na alma e no coração. Não vou...

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


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