Morar em bairro violento é assim: você tá chegando em casa
vindo da escola e de repente um carro para ao teu lado, uma porta abre e um
peso é jogado no chão, quase em cima de você: buf.
Você vê que é um corpo, seu coração para no peito por alguns
segundos (enquanto você reza pra não ser ninguém conhecido, o carro voa
cantando os pneus), e então volta a bater. Nesse momento, outras pessoas, seus
vizinhos, já estão correndo em direção ao corpo, como se sentissem o cheiro da
morte, e alguns são tão ousados que não se importam em virar o corpo com o pé,
de modo que fique mais fácil identificá-lo.
Se for alguém conhecido, você pensa uma pena, fulano era um
cara... ou algo do tipo.
Se não for conhecido, você simplesmente respira aliviado.
Nesse caso era conhecido, mas do tipo que inspira alívio,
não lamentos. Seu nome ninguém sabia, mas todos o conheciam por Bugalu, um
viciado metido a dono da rua que vivia puxando encrenca com todo mundo. Seu rosto
estava inchado, os lábios cortados e o olho roxo, havia um furo de bala no lado
esquerdo da testa.
Dei de ombros e fui pra casa, aliviado por saber que Bugalu
não encheria mais o saco de ninguém. Ao chegar, tirei a roupa da escola e me
deitei com os fones de meu walkman enfiados no ouvido e comecei a ler um gibi
do Cebolinha, cuja história principal era uma paródia da peça do Edmond Rostand:
Cebolô de Belgelac, onde Cebolinha fazia o papel de Cyrano, Cascão de
Cristiano, e Mônica de Roxane. Eu adorava aquela história.
Era 1995, e eu tinha 10 anos. Muitos dos meus amigos que
morreriam posteriormente por causa de algum envolvimento no tráfico de drogas
local ainda estavam na idade escolar, como eu, e ocupavam o tempo livre jogando
futebol na rua ou no terreno baldio mais próximo. Às vezes fugiam um pouco da
rotina e substituíam o futebol por alguma outra coisa, mas no geral era futebol
mesmo e eu bem que tentei acompanhá-los com minhas pernas de pau e meu fôlego
curto, sem obter nada sequer próximo do sucesso. Assim, o que fiz foi me isolar
cada vez mais com meus gibis e meus desenhos animados, além dos filmes dublados
do Van Damme que eu alugava nos finais de semana.
O tempo foi passando e o bairro foi ficando cada vez mais
violento, e com o bairro meus amigos também foram ficando mais violentos, e
isso só fez com que eu me isolasse cada vez mais. Um dia aconteceu de meus
amigos já não serem meus amigos, e de eu nutrir por meu bairro quase nenhuma
afeição, além de uma vontade gritante de dar o fora na primeira oportunidade. E
foi o que fiz. Sem olhar pra trás e com medo de virar estátua de sal se o
fizesse.
Anos mais tarde voltei ao bairro, encontrei por acaso um
velho amigo que jamais saíra de lá e nos mandamos pro bar mais próximo. Pouca
coisa havia mudado lá, ele disse, mas a principal era que a galera das antigas
ou morrera ou caíra fora ou estava comendo o pão que o diabo amassou. Então
começou a discorrer sobre destinos trágicos e sonhos perdidos, e a noite
terminou principalmente em tristeza.
2 comentários:
Texto incrível, saboroso e inquietante, parabéns. Um abraço fraterno do amigo Baltazar.
Texto triste e realista. Um retrato do cotidiano infelizmente já tão banalizado nas cidades. Gostei demais. A linguagem é simples, direta e cheia de conteúdo.
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