— Eu
nem queria acreditar! — o tom teatral do meu amigo Rui, na fila de
almoço da cantina da faculdade, prometia história. — As peças do
Ostomachion, em vez de estarem arrumadinhas no caixilho delas,
estavam ao lado, ostensivamente, a formar um triângulo retângulo.
Somos
colegas do curso de Matemática Aplicada, mas ele tem um part-time
no Museu de História Natural e da Ciência, onde faz visitas guiadas
às quartas e aos domingos. Diz que é para ajudar a pagar as
propinas, mas eu acho que ele gosta mesmo é de revelar aos
visitantes as pequenas maravilhas da ciência, expostas no museu. Já
tem falado do brilho que parece acender-se no olhar de quem, de
súbito, apreende a explicação.
— Fiquei
surpreendido, mas agradado — continuou ele —, porque nunca tinha
visto qualquer visitante a conseguir construir outra figura.
Geralmente, limitam-se a tentar reconstituir o quadrado inicial, o
que alguns conseguem, porque a folha de apoio mostra o desenho da
posição relativa das peças. Quando não conseguem, lá está o
vigilante que recoloca tudo na posição própria.
O
Rui falava de um jogo matemático inventado por Arquimedes —
o Ostomachion
ou Caixa de Arquimedes. Não sabemos se o usava como passatempo para
exercitar o cérebro ou se tinha objetivos de pesquisa científica. É
constituído por 14 peças planas, de variados formatos poligonais,
com as quais é possível construir figuras geométricas planas ou
sugerir objetos em silhueta, à semelhança do popular Tangram. Na
“sala de jogos” do museu, está exposta mais uma dúzia de outros
jogos ligados à geometria e à matemática, que foram surgindo ao
longo dos séculos.
— Não
tinha importância se o jogo era apresentado de uma maneira ou de
outra, mas, fiquei curioso: quem poderia ter-se lembrado de tentar
montar um triângulo e tê-lo conseguido, com todas aquelas peças
irregulares? Falei com o vigilante da tarde, que me garantiu que tudo
tinha ficado arrumado como habitualmente. Mistério…
Eu
próprio comecei a ficar interessado na história, confesso.
— No
domingo seguinte, era um hexágono que me sorria zombeteiro, onde
devia dormitar um quadrado. O vigilante, desperto para a questão,
disse-me que todas as manhãs encontrava uma figura geométrica
diferente, construída com as peças do Ostomachion. Como podia ser
isso? Comecei a duvidar de toda a gente. Terça-feira apareci de
surpresa, à hora do fecho, mas estava tudo arrumadinho. Na manhã
seguinte cheguei bem cedo e entrei com o vigilante. Um prosaico
quadrado enchia o caixilho. Suspirei de alívio, pensando ter
identificado o brincalhão. O sorriso sobranceiro que me preparava
para dirigir ao vigilante fechou-se-me logo a seguir. O quadrado não
era o da folha-guia, mas um dos outros 536 que as combinações das
14 peças do jogo permitem.
— Mas,
então, não me digas que o Arquimedes voltou lá da Siracusa de
antes de Cristo para gozar contigo! — ironizei.
— Nem
pensei no Arquimedes. Já estava a ficar maluco, mas nem tanto! Só
pensava em como podia descobrir o que de estranho se passava naquela
sala, quando eu lá não estava. Então, lembrei-me das câmaras de
vigilância, mas a sala dos jogos não as tem. Para grandes males,
grandes remédios! No dia seguinte, camuflei uma microcâmara com
emissor apontada à zona da mesa do Ostomachion. Não me olhes com
esse olhar de reprovação! —
eu precisava de desvendar aquele mistério, o quanto antes. Essa
noite passei-a no carro, em frente ao museu, a vigiar o Ostomachion
pelo meu portátil; mas, acabei por adormecer. Acordei com o clarear
do dia e o barulho do trânsito. Apressei-me a olhar para o ecrã —
um
retângulo alongado reclinava-se no branco da mesa… Digo-te,
naquele momento, desanimei —
o fantasma que alterava o Ostomachion voltara a atacar e eu voltara a
não ver nada.
Mas logo a seguir vi surgir uma mulher. Fazia deslizar pelo soalho o
que parecia ser um aspirador. Ou uma enceradora. Ao passar pela mesa,
parou, olhou o puzzle
por uns momentos, moveu dois conjuntos de peças e afastou-se,
deixando um aprumado losango...
— Estás
a gozar; a empregada da limpeza?
— É
verdade! Eu também tive dificuldade em acreditar. Quando, umas duas
horas depois, saiu galhofando com as outras, segui-a. Era negra e
muito bonita, com uns olhos… No autocarro para a Pontinha, foi o
tempo todo a resolver sudokus. À saída, abordei-a. Expliquei-lhe
quem era e porque a seguira. E pedi-lhe desculpa, claro! Depois de
ter ganho confiança, disse-me que não tinha nenhuma razão
conspirativa para alterar o quadrado do Ostomachion, só um enorme
gosto por puzzles
e paciências. Nisso convergimos. Acabámos por ficar bastante tempo
à conversa e até lhe expliquei as minhas técnicas para resolver os
sudokus, mas não eram novidade para ela. Sabes, convergimos noutras
coisas —
sorriu-se o meu amigo. — Temos
saído algumas vezes. E acho que o meu trabalho para Geometria do
segundo semestre vai ser sobre o Ostomachion. Como homenagem…
Joaquim
Bispo
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6 comentários:
Delicia de conto, um prazer!!
Obrigado, Baltazar!
Uma delícia, este conto
Obrigado, mac!
Que conto gostoso! É doce, sem ser piegas. Uma insinuação de romance, no final, que não compromete o ponto central da história. É leve, de leitura fácil, Mas, como sempre, mostrando a cultura do autor.
Obrigado, Cinthia. As reações têm vindo a dar-me indicações de que o conto passa bem. Isso de o autor mostrar cultura, o que eu admito, é que não sei se será boa credencial... :)
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