Levava tatuado o nome da filha ilegítima
na parte posterior do braço vigoroso. Talvez o carregasse ali para explicitar a
significância que dispensava às mulheres.
Vestido em camisa sem mangas ― de
estampa floral e botões inúteis ―, exibia evidente robustez. O volume na
bermuda jeans garantia a seu pau o status de sagrado símbolo fálico de nossa
casta comunidade. Um indecente palito de fósforo bailava na brancura traiçoeira
de seus dentes e enaltecia sua canalhice de homem, sua indisposição para
assuntos importantes. Não tirava dos pés o All
Star sambado e nem da cabeça o boné virado para trás, que trazia na pala a
numeração de algum vereador que não fora eleito nas campanhas de sabe-se-lá-quando.
Tinha sobre os largos ombros a cabeça
cuidadosamente protegida pelo elmo que o defendia do mundo e de si mesmo. Vivia
com tranquilidade, guardado por uma enganosa e inviolável película, armadura
resplandecente que distraía os que teimassem em mirá-la com demorada atenção em
busca do que por baixo havia.
Famélico comedor de bocetas, gozava na
cara e na boca de mulheres que rastejavam a seus pés e suplicavam-lhe por mais uma
foda desprovida de orgasmo, por mais uma justa mãozada na cara. Galinhas ou engaioladas,
todas ansiavam semelhante submissão: A dor a cada nova estocada, a ausência do
próprio prazer, o coito interrompido, o gozo negado.
Descabaçar virgens apaixonadas ―
acometidas tardia ou precocemente por sua cópula brutal ― era lugar comum em
sua licenciosa rotina, na qual também desempenhava a infame missão de consolar mulheres
solitárias e sexualmente alienadas.
Que homem esplêndido era meu vizinho!
Que voluptuoso arquétipo de macheza inspirava todos os rapazes de meu bairro!
Recostado ao muro de uma movimentada
esquina, mexia o cordão de ouro dezoito em volta do pescoço equino e definia
seu território às cusparadas. Olhava fogoso para as bundas das adolescentes que
por ali passavam e instruía seu séquito de púberes aprendizes:
― São todas glúteos que anseiam picas!
― dizia o elmo à armadura, enquanto dormia qual princesa o cavaleiro.
Apesar de suas aventuras, era casado
com uma mártir destituída de qualquer glória, tantos anos mais velha que ele.
Religiosa, acreditava que os encontros de seu marido com outras mulheres
fizessem parte de um plano de deus para remi-lo de sua abominável falta. Pai, fracassei na missão de salvá-lo.
Manter-me casada e conformada é a única maneira de não desagradar-Te totalmente,
orava.
Não era tarefa das mais fáceis ser viado
em meu bairro. Não pelas carolas que se benziam quando passávamos assanhadas,
nem pela molecada zombeteira que nos marcava a ferro com seus odiosos apelidos.
Também não era por causa dos bêbados que praguejavam ofensas incompreensíveis, e
muito menos pelas meninas que teimavam em nos impor suas tolas companhias,
tomando-nos por seus confidentes de estimação, como se nos fosse prazeroso
saber de suas pequeninas aventuras sexuais, tão mesquinhas quanto o ingênuo
pedido que delas se fizesse segredo.
O problema era ele. O que transformava
a rotina dos viados de nossa vizinhança ― fôssemos nós bichas caretas ou monas fabulosas
― era o maldito sugador de vaginas, o trepador compulsivo, tantas vezes jurado
de morte por pais desolados e maridos traídos.
Armado de uma criatividade sórdida, usava
sua língua de gume afiado para arrancar lágrimas até mesmo dos mais bem resolvidos
entendidos de nosso perseguido clube segregado. Escarnecia de nossas roupas e
cortes de cabelo, enquanto imitava-nos os gestos e vozes em um crudelíssimo
espetáculo de ventriloquia.
Ele nos odiava. Nem mesmo suas
insígnias vulvares alimentavam-no de tanto prazer quanto nos esfolar o couro entre
duas ou três piadas cortantes.
Tantas vezes desejei sua morte, quantas
pragas atirei contra aquele belo e irresistível inimigo, de olhos semicerrados,
sobrancelhas contraídas, sorriso libidinoso, cavinhas esculpidas nas maçãs do
rosto e escondidas sob a barba malfeita, como duas pantanosas armadilhas.
A fim de abrandar o terrível efeito que
sua impostura me causava, todas as noites eu comia-o em pensamentos. A
musculatura retesada de meu acossador rangia lânguida e ele implorava mimoso para
que eu o currasse com violência e me dissolvesse por dentro e ao redor de seu
próprio gozo. Quem é o viado agora?, eu
perguntava à fronha transformada em músculos. Quem é o escroto agora?, exaltava-me ao meditar sobre a vingança que
escorria morna por meus dedos anestesiados.
Aquilo virou um hábito, um exercício de
desconstrução do outro. Quanto mais eu o fodia sob a protetora bênção das horas
insones, menos assombroso ele se revelava a cada manhã. Eu já não trocava de
calçada quando o via caminhar pela rua, perseguia-o, estreitava meu corpo ao
seu no mercado, na fila da casa lotérica, na farmácia. Quase podia sentir seu desconforto,
o eriçar dos pelos de sua nuca, enquanto minha cabeça repetia o mantra: Viadinho. Viadinho.
O ídolo havia sido desmontado por minha
autossatisfação sexual. Diante de meu olhar modificado por libertadora miragem,
aquela fortaleza viril transmudara-se em quebradiço arremedo de homem, cuja
trinca em sua estrutura eu conhecia a localização topográfica.
Passei a dirigir-lhe sorrisos de
cumplicidade, como se dividíssemos algo que os outros ignoravam. Meu inofensivo
devaneio havia se transformado na incômoda expressão de um mistério que temia
tornar-se evidente. Embaraçado, o piadista se esquivava de minha presença e já não
me incluía em suas costumeiras caricaturas. Naquele nauseante circo de
horrores, o chicote passara a serpentar nas mãos do antes assustado felino.
Meu opressor sabia que mesmo contra seu
arbítrio, como um sonâmbulo, visitava-me constantemente os pensamentos. E em
meu pobre fetiche, em minhas pouco inventivas taras, eu o via tal qual ele
realmente era, e isso o estremecia.
― Com quem você andou falando, seu
baitola? Quem contou mentiras a meu respeito? Foi minha mulher? O que te disse
aquela múmia? O que você sabe? ― inquiriu-me ao invadir minha casa e revelar a
faca que trazia junto ao cós da bermuda.
― Quem te falou sobre mim? ― ameaçou-me
uma última vez, com a arma em riste. Cavaleiro e espada.
― Foi você, sua maldita bicha
enrustida! ― gritei, apesar da vida que vacilava diante do fio. Minha vida.
Desprovido da máscara que lhe permitia
abusar de seus iguais em humilhantes delitos, ele pôs-se a chorar. Tinha a
armadura arruinada e o elmo caído a meus pés. Após largar a faca sobre o tapete
da sala, pediu-me desculpas, deu-me as costas e mais uma vez saltou o muro de
minha casa. Fugiu para nunca mais voltar. Uns dizem que trabalhou por anos no
mercado pornográfico, outros juram que ainda hoje é pastor evangélico em uma
cidadezinha do interior.
Não importa. Tudo que sei é que, de um
único golpe, aquele sujeito subtraído de si mesmo saqueou-me a doce angústia da
dúvida, a delícia de jamais sabê-lo de verdade.
Emerson
Braga
16 comentários:
Mais um grande texto. Amo essa linguagem crua que faz a realidade se apresentar mais vívida. A ironia das máscaras tentando esconder as mentiras. Muito bom!
Cínthia, ter meu trabalho reconhecido por uma escritora de sua envergadura é mais que gratificante. Sinto-me inteiramente motivado a perpetuar no ofício da literatura, apesar de todas as limitações e obstáculos. Obrigado pela injeção de ânimo.
Magnífico!
Extraordinário!
Muito bom mesmo, existem muitos desses por aí!
Nua e crua! Adoreiiii! Que talento!!! 👏👏👏
Nossa! Que final babado! Texto magnífico! Adorei :-) realidade de muitos por aí.
Sempre me admiro de novo com seu modo de construção das personagens! Elas vão aparecendo aos poucos, de mansinho, se tatuando em cada detalhe simples e genial, até surgirem repletas de si mesmas na frente do leitor admirado. Aí entra o autor e arranca a pele do sujeito, deixando-o "nu" e indefensável em nossa frente. E nós por solidariadade, ficamos "nus" e indefensáveis diante do texto. Sensacional, meu bom!
Fiquei com os pelos arrupiadosl. Muito bom.
Sempre me admiro de novo com seu modo de construção das personagens! Elas vão aparecendo aos poucos, de mansinho, se tatuando em cada detalhe simples e genial, até surgirem repletas de si mesmas na frente do leitor admirado. Aí entra o autor e arranca a pele do sujeito, deixando-o "nu" e indefensável em nossa frente. E nós por solidariadade, ficamos "nus" e indefensáveis diante do texto. Sensacional, meu bom!
Obrigado, Thalitta, Thaís, Emanuel, Kaio e Maria Céu! Amo vocês, seus lindos! Obrigado por sempre me apoiarem em tudo.
Muito envolvente! Até eu desejei esse homem tão esplêndido. Adorei o final!
Que delícia de texto, meus céus!!!
Marco A
Assinado: Alynne
Emerson, sempre leio seus contos de um fôlego só. Não dá pra parar. Vibrante!
Adorei o texto! Sincero, irônico e envolvente!
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