Sou viúva de santeiro. Ainda hoje moro no casebre ao lado da oficina que cheira a milagre. Quando nasce uma nova imagem, rezo à Virgem, agradecida. Em Minas é assim: a religião dá sustento a muitas famílias.
O avô do meu sogro já ganhava a vida com as virtudes do cinzel. O ofício tem galgado gerações, como sinal de esperança. A arte popular corre nas veias dos homens da família, batizados pela escultura. Seu trabalho é movimentar a devoção, facilitar o acesso à santidade. Meus filhos aprenderam cedo a manusear o formão, o macete e a goiva. Brincaram muito com lasquinhas de madeira e com pó de argila. Seus bonecos eram os santinhos defeituosos, impróprios para venda.
As mulheres também se dedicam. Ajudam nos finos retoques da pintura das peças, compram matéria-prima, atendem os clientes devotos e administram o lucro sagrado. Nosso ateliê é especial, porque fabrica e comercializa tanto esculturas feitas em madeira quanto em cerâmica. Produzimos réplicas dos canonizados e também daqueles santos do povo, queridos e simpáticos, mas que ainda não ganharam o título do Vaticano. Fabricamos imagens de N. Sra. Aparecida, N. Sra. de Fátima, São Frei Galvão, São José, Santa Edwiges, Padre Cícero...
Até hoje me emociono com cada obra recém-criada. Ontem mesmo ficou pronta uma beata interessante, feita sob encomenda. O freguês era devoto de Madre Paulina, Irmã Dulce e Nhá Chica; pediu, então, uma imagem mista, em cedro, que remetesse às três religiosas. A estátua tem os olhos fundos de Irmã Dulce, a negra cor de Nhá Chica e a veste preta e branca de Irmã Paulina. Se pedir a intercessão de uma única santa já traz resultados tão favoráveis, imagine rezar uma novena inteira diante da imagem triplamente ungida?! Um padre veio junto do paroquiano, para benzer a venerável novidade.
Há quem faça encomendas criativas e até esquisitas. Outro dia, um motorista de táxi pediu uma N. Sra. do Semáforo para pendurar no espelho interior do carro. “Tenho certeza de que ela vai abrir todos os sinais para mim” — disse, convicto. Um jovem de braços tatuados veio encomendar um São Videogame, que certamente o ajudaria a vencer os campeonatos de jogos virtuais. Uma madame comprou um minicrucifixo de madeira para seu cachorrinho de estimação. “Ele vai à missa comigo e já sabe até latir o terço” — afirmou.
Alguns fiéis são bem criteriosos. Analisam peça por peça, até se sentirem seguros quanto à imagem a ser adquirida. “A escultura deve ter, no máximo, 15 centímetros, para caber na bolsa e não pesar demais. Minha promessa é levar a santa aonde eu for e para sempre” — confidenciou a senhora obesa que se locomovia com dificuldade. “Eu era mórbida, agora sou severa. O sobrepeso será o meu milagre”.
Há quem prefira as imagens de argila: “Elas vêm do pó, como nós” — argumentam alguns clientes. Um colega que não é cristão quebra a escultura assim que a graça é alcançada; por isso, gosta das peças mais frágeis. Por outro lado, alguns dão mais valor às esculturas de madeira. Pensam que a resistência do pau de árvore incentiva a persistir na oração e na caridade. Acham que a fé reside é no entalhe, recorte e montagem do lenho! “A cruz de Nosso Senhor é a grande prova disso” — explicou uma fiel.
Assim como há santo de todo naipe e protetor de toda causa, há crente de toda sorte e indigente de toda vontade. Alguns colecionadores exigem várias estátuas de um mesmo beato: pequenas, médias, gigantes, gorduchas, magrelas, de madeira, de bronze, de barro, de corpo inteiro, só o busto... Um dos nossos melhores compradores tem mais de sessenta imagens de João Paulo II. Ele diz que conta com a custódia do papa há anos. “Pra mim, ele já é santo há muito tempo”.
A crença do povo emociona, e ainda bem que existe a arte dos fazedores de santos para referendar essa relação das pessoas com o Divino. A gente gosta de tocar os beatos, conversar com eles, mudá-los de lugar, abraçá-los, passar uma flanelinha limpa para tirar a poeira deles. A gente gosta de acreditar que eles também tinham pecados, mas se arrependeram e optaram por uma vida reta. A gente quer saber detalhes do dia a dia desses nossos amigos íntimos. A gente dá comida e até pinga para os companheiros de peleja. É preciso acreditar que a santidade cabe a qualquer um.
Meu santo de devoção é exclusivo. Convivi trinta e dois anos e tive dois casais de filhos com ele. Pense num homem bom e amoroso! Pense num pai presente e dedicado! Acho que apreendeu a virtude dos santos que esculpiu. Augusto foi promessa cumprida em minha vida, matrimônio acertado com a bênção de Santo Antônio.
Quando éramos noivos, eu tinha ciúme da forma como ele modelava as santas, do cuidado dele com a feitura de suas curvas, da forma profunda como ele olhava e tocava as Virgens. Com o tempo, meu despeito se tornou admiração, afeto, adoração — pelo marido e pela arte sacra. A oficina de um santeiro é verdadeira fábrica de amor!
Sonho em ter uma escultura de Santo Augusto em meu quarto viúvo, mas meu esposo não se deu ao trabalho de criar o autorretrato. Não faço a encomenda para os santeiros vivos que me são próximos, nem para os distantes. Eu mesma quero fazer a imagem, em segredo, em penitência, com base nas fotos que tenho dele e na lembrança de nossos bons tempos. Falta-me habilidade e força e destreza. Sobra-me obstinação e carinho e esperança. Reservei mil madrugadas para talhar o meu santo santeiro. Vez ou outra, magoo as mãos e entristeço a alma, mas o mister da mulher de artista é mesmo esperar, sempre em serviço. Deus só me leva quando a obra estiver pronta!
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
Santo de casa é que faz milagre
por Maria Amélia Elói
3 Comentários
3 comentários:
Texto maravilhoso! Cresci tendo na sala de casa uma linda imagem de Nossa Senhora da Conceição. Misterioso e mágico mundo, o dos santos e santeiros...
"É preciso acreditar que a santidade cabe a qualquer um." Acho que nunca havia lido texto tão suave e crítico ao mesmo tempo. PARABÉNS!!!! (Gina Girão)
Obrigada!
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