Maria
abriu cuidadosamente o relicário,
mirando os olhos da imagem
que ali
ficava guardada. Ajoelhou, como fora ensinada a fazer, e
principiou a entoar mecanicamente mais uma de suas
preces. Emendava uma oração na outra,
sem jamais
obter o alívio
desejado. A santa olhava, impassível, nada
podendo fazer diante
daquela situação. Seu
olhar continha uma espécie
de tristeza, uma quase
resignação, que não
ajudava muito a confortar
a devota que
a ela se dirigia.
“Mulher só sai de casa três vezes na vida: para ser
batizada, para
casar e para o próprio enterro”. As
palavras da avó ainda
ecoavam em seus
ouvidos. Bendita sois vós
entre as mulheres.
Por que,
então, tantas renúncias, ó mãe?
Persignou-se,
acendeu uma vela e saiu do cômodo. Em alguns segundos
retornou e trancou o relicário, evitando
o olhar da santa.
Em seguida,
cerrou as janelas, não
sem antes
respirar a brisa
fria que
vinha de fora.
Cheiro de gente,
de rua, de vida.
Calçou os chinelos gastos e pôs-se a ler.
Época
de novena era
assim mesmo.
As outras vinham à sua casa rezar o terço durante vários dias. O motivo agora era a candidatura do pai de uma delas, atual prefeito da cidade.
A novena, contudo,
não parecia ajudar
na reeleição do sujeito,
cuja popularidade
caíra vertiginosamente desde que fora visto
saindo de uma casa de tolerância na cidade
vizinha. Era
caso perdido. E eleição
também.
Pediram,
então, a imagem
da santa. Que
percorreria a cidade, numa procissão improvisada e direcionada. Depois,
passaria alguns dias
na casa de cada
devota integrante
do grupo de oração,
para recuperar a nódoa na imagem
do sujeito. Maria, que
não se interessava por
política, mas não
podia negar o favor,
cedeu, embora a contragosto.
No
dia seguinte,
bateram à porta bem
cedo. Duas mulheres
pertencentes ao grupo vinham buscar a Virgem, padroeira de Santa
Maria da Renúncia. Dirigindo-se vagarosamente ao quarto, na
tentativa de protelar a retirada da imagem de
sua casa,
pegou cuidadosamente o relicário. O grito foi uníssono. A santa havia desaparecido. Como podia uma coisa dessas? Como ela podia ser tão desalmada e ingrata
a ponto de forjar o roubo da imagem em vez de
cedê-la para tão
nobre propósito?
As beatas do lugarejo
saíram, indignadas.
Os
dias escoavam-se sem
que a imagem
aparecesse. O relicário aberto
assemelhava-se a uma casca sem noz, a uma caixa sem presente. E Maria adoeceu com
a falta da santinha. Ninguém mais a
essa altura duvidava que a santa
tivesse sido de fato roubada, embora nenhum forasteiro tivesse sido visto
nos arredores
na semana do desaparecimento.
De
resto, tudo
parecia normal em
Santa Maria da Renúncia.
Ou até
melhor. Nem
parecia inverno. As rosas
desabrocharam antes do tempo, o gado –
sempre tão
passivo – ficou mais
agitado, e a brisa
que soprava no fim
da tarde trazia agora
um ardor inesperado. O frio,
marca característica
do lugar, fora
repentinamente substituído por um calor sem
precedentes, como se uma espécie de sezão
assolasse o local. As mulheres, que antes permaneciam em
casa, aquecidas, queriam agora sair. Joelhos ofereciam-se, não
mais ao milho,
mas à contemplação
alheia. Ombros
e decotes foram vistos
por ali,
e madonas renascentistas
surgiam a cada beco.
Maria
mirava o relicário, agora
um santuário
de ausência, e pranteava a saudade que
sentia de sua companheira
de infortúnio. Adoecera na semana em que a Virgem sumira. Febres inexplicáveis
atormentavam-na dia e noite. Certa vez, foi encontrada vagando perto
da cachoeira, roupa
molhada colada ao corpo.
Delírio,
dizia o médico. Pecado, dizia o padre.
E havia um moço
que nada
dizia, mas o sorriso
em seus
olhos fazia a maior
prece jamais
entoada em louvor
à santa. Ou
ao roubo.
Os
ardores de Maria eram agora conhecidos
e tolerados por todos
no lugarejo. As beatas
benziam-se: tadinha. Uma alma pura que se perdera longe
da proteção da padroeira. Bebia o vinho do pai,
brindando à santa ausente.
Rodopiava como se não
soubesse mais o que
era linha
reta, e sua
saia alçava voos de serpente
alada. Gargalhava como
se nunca houvesse frequentado colégio de freiras,
e deitava-se no chão, mirando inexistentes estrelas
que cintilavam proibidos
latejos em sua
cabeça. Em
seu peito.
Em seu
ventre.
Dois
meses depois, Maria foi despertada pelo olhar da santa, dentro
do relicário. Incrédula,
abriu-o, indagando, mentalmente, quem a havia roubado. Nenhuma resposta.
Havia fugido, então?
Um meio
sorriso pareceu se desenhar
no rosto da imagem.
Devia estar mesmo louca, como todos
julgavam. Tinha de anunciar
o retorno da Virgem.
Gritar. Sua
protetora voltara. Abriu a janela,
sentindo o vento frio
de sempre agredir-lhe o rosto. A imagem,
trancada no relicário, assumira o tom triste de antes.
Não pensou duas vezes.
Abriu o relicário, piscando levemente, e voltou a dormir.
Ambas sabiam que a santa
não mais
estaria ali quando
Maria acordasse. Nem ela.
2 comentários:
Uma delícia de conto. Imaginei as cenas.
Obrigada, Cinthia! Gosto muito dessa história, apesar de ela ser antiguinha.
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