O
verão estava no auge. Das aulas já Albertino se tinha esquecido
alegremente, nos seus treze anos ávidos de largueza campestre, o pé
descalço, liberto, as roupas soltas, o chapéu desabado, mas
confortável. O seu céu era a ribeira: um charco aqui, outro acolá;
o resto, areal sombreado pelos amieiros, a frescura e o jogo das
areias, duma firmeza indolente, a acariciar-lhe as solas dos pés a
cada passada, a ceder languidamente com um ruído roçagante —
música para os seus ouvidos. Em cima, o emaranhado dos salgueiros ou
o horizonte mais alto das copas dos amieiros, ondulando suavemente; o
sol a vibrar nos seus olhos ao ritmo da folhagem, a fisga preparada,
a atenção concentrada. Qualquer movimento irregular da ramagem
podia indicar um pássaro. As horas passavam, o prazer inebriava, só
o estômago obrigava a regressar ao casarão familiar de telha vã.
A
observação dos pássaros e da sua beleza, a fruição dos seus
cantos, levava-o a querer engaiolar alguns e a tê-los à disposição
para prazer auditivo e visual, mas também para ostentação do
troféu. Com alguma habilidade construiu uma gaiola com uma tábua,
vários galhos e arames velhos, na qual não faltavam comedouro,
bebedouro e uma portinhola com mola. Sabia que não podia engaiolar
pássaros que se alimentassem de insetos e larvas. Só os que
comessem sementes. E destes, qual seria o mais bonito senão o
pintassilgo?
Um
dia descobriu um ninho de pintassilgos nos ramos de uma oliveira
pequena. Três ovos. Foi-o guardando, mas evitando aproximar-se
demasiado, sabendo que os pássaros chegam a abandonar os ovos, e até
os filhotes pequenos, se notam que o ninho anda a ser controlado.
Curiosamente, se os encontrarem numa gaiola — ouvia dizer —
alimentam-nos até perderem a esperança de os ver soltos e então
dão-lhes sementes venenosas para os matar. Por isso, planeou
encerrá-los na gaiola poucos dias antes de poderem voar, e deixá-la
pendurada na oliveira onde estava o ninho. Isso permitiria não os
deixar escapar e esperava que os pais os alimentassem por mais uns
dias, os suficientes para que eles conseguissem comer, por si, as
sementes que lhes iria pôr na gaiola. E, então, trazê-la para
casa.
Os
dias foram passando arrastadamente, os passarinhos nasceram e
foram-se emplumando. Quando achou que poderiam voar em breve,
meteu-os na gaiola, com água no bebedouro e alpista no comedouro.
Mas, como a oliveira era demasiado soalheira, temeu uma excessiva
exposição ao sol inclemente de agosto e resolveu pendurar a gaiola
no ramo alto de uma árvore frondosa que distava dali uns duzentos
metros. A distância não seria problema, dado que os pássaros
detetam com facilidade os pios uns dos outros. Lá os deixou e voltou
feliz para o casarão. Já tinha os seus pintassilgos!
No
dia seguinte, chegou a malhadeira, aquela máquina monstruosa, do
tamanho duma camioneta de carreira, com os seus ruídos estranhos e
movimentos sinistros, mas com capacidades maravilhosas, com que nessa
década de sessenta se malhava o produto das searas. Recebia molhos
de centeio desatados, por uma abertura superior, que, depois de
suspeitados safanões, pancadas e outros tratos violentos no seu
interior, vertia, por um bocal, o grão, que era aparado em sacas de
serapilheira e lançava, pelo outro lado, a palha em borbotões. O
cereal era acarretado para a tulha; a palha era acondicionada ao lado
da eira em montões redondos de perfil ogival, para resistirem às
chuvas. Ameaçadora era a longa correia de transmissão de movimento,
que ligava um cilindro metálico giratório, num trator anexo, a um
cilindro semelhante na malhadeira, o qual fazia funcionar todas
aquelas peças em madeira que iam e vinham num ritmo contínuo e
ensurdecedor, cumprindo tarefas difíceis de adivinhar no interior do
engenho.
A
meda do centeio era grande, a lide era contagiante; havia a novidade
de toda aquela gente que lidava com a máquina com enorme destreza e
rapidez, apesar dos perigos que ela representava. Contavam histórias
de outras eiras, de alguém que, ao meter o centeio, tinha deixado ir
a mão muito à frente e tinha ficado sem alguns dedos, ou daquela
mulher que se desequilibrara e caíra lá para dentro...
Ao
fim do segundo dia, cumprida a malha, foram-se todos embora: os
ceifeiros, para as suas terras; a malhadeira, a caminho de outra
eira. A paisagem nesta mostrava-se substancialmente alterada. A
anterior meda em forma de casa, feita de molhos de centeio carregado
de grão, transformara-se nuns cinco ou seis grandes montes de palha
leve — cama de gado para o ano inteiro. Ficava no olhar um brilho
de fim de festa. Voltava a calma, voltava a rotina de todos os outros
dias.
De
repente, lembrou-se. A ideia retiniu-lhe na cabeça em toque de
alarme. Tinha-se esquecido completamente dos pintassilgos. Teriam os
pais descoberto os filhotes? Tê-los-iam alimentado? Desatou a correr
para a árvore afastada, em desatino. Trepou rapidamente até ao
galho onde os tinha dependurado, mas o coração apertava-se-lhe —
não ouvia qualquer pio. Por fim, assomou. O fim de tarde ia ainda
quente, mas pelo corpo de Albertino perpassou uma onda do frio
glacial das noites de fevereiro. O olhar tentava discernir o que o
remorso persistia em enevoar. Daqueles três passarinhos, já todos
cobertos de pequenas penas firmes e bem compostas, já a imitar a
coloração dos pais, nada mais restava do que três novelos de penas
emaranhadas, desgrenhadas, tombados no chão da gaiola.
Retirou-os.
Estavam frios. Tinham morrido há muito. De frio? De fome? De
sementes venenosas dadas pelos pais? Tanto fazia. Albertino só
sentia que, pela sua cobiça pueril, pela sua negligência, tinham
morrido três lindas avezinhas. Morte estúpida, perda pura.
Voltou
para casa acabrunhado. Não chorou. Os adultos reprovavam o choro nos
rapazes.
Joaquim
Bispo
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Este
conto foi escrito em 1982 (20 anos depois), em vésperas de uma
intervenção cirúrgica, o que é significativo da sua importância
como catarse e contrição.
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Imagem
colhida na net
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