Faz
meses, não, acho que já faz anos que a menina se arranha se machuca e se mutila.
Até agora vem conseguindo esconder o fato. Ora foi um tombo, outrora um
acidente com a faca na cozinha, e assim os engambela todos. Aos olhos de pai
mãe namorado avós primos professores professoras padre ela é sempre boa e pura.
Bela e com a face (quase) angelical, os cachos loiros dando o acabamento necessário
ao rosto cujos olhos verde-azulados coruscam de modo absurdo.
E
não para de se ferir cutucar com as unhas com estiletes grampos fivelas clipes pontas
de facas. Às vezes, muitas, nem percebe. Está concentrada em um programa da
televisão ou então no celular e, quando vê, é um grito que sai, revelando que
despedaçava a pele do calcanhar, a perna dobrada sobre a cadeira, o joelho saliente
escapando do short e agora a carne ferida reclama em vermelho.
Inúmeras
as promessas de que pararia, mas prometer a si mesma costuma não dar em nada, Cândida
sofre a cada vez que constata que se sabotou e se rasgou de novo. É pura e boa.
Mas falha sempre e, como falha, as pessoas morrem. Tia Joana morreu no acidente
de carro, tio Alberto inutilizado na cama, e tem ainda dona Zica, ninguém lhe
tira da cabeça que não podia ter deixado a velha ir embora mais cedo naquele
sábado, foi pegar outro ônibus, ninguém a conhecia, pronto, todo mundo
assaltado, os policiais, o tiroteio, a faxineira de anos de sua mãe morta à toa.
Era ela. Se tivesse feito as coisas certas no momento certo, estariam todos
bem.
Só
Cândida sabe quantas são as ruindades em sua cabeça. Aquele homem, por exemplo,
terminando de atravessar mais devagar a faixa, o farol já esverdeando pros
carros. Se quisesse, lançava o pé no acelerador e passava por cima do homem.
Estaria feito. Por nada, talvez apenas para que soubessem que não é boa nem
pura nem bela. É suja e sua sujidade não sai com qualquer limpeza. Sua sujidade
não para de lhe atormentar e vem se tornando dia a dia mais pesada.
Seria
tão simples, nem saberia quem teria sido o homem morto, se tinha filhos,
mulher, nada. O farol abre e ela acelera devagar, o homem (era meio manco?) já
em sossego na calçada. Não tinha feito nada e é preciso conferir pelo
retrovisor que o homem continuava vivinho. Sim. Continuava. Mas ela não podia
continuar. Tinha pensado em sentir as rodas do carro deliciosamente esmagando a
cara do homem manco. A parte de baixo do carro retalhando a pele do homem. As
tripas pra fora, o sangue espirrando.
Pessoas
normais não pensam em matar nem temem da próxima vez não conseguir segurar o
intervalo de segundo entre pensamento e ação, mas faz muito tempo que Cândida sabe
que não é uma pessoa normal e agora é preciso socar muitas vezes o saco de
areia do boxe até suas mãos sangrarem pra ver se tira de dentro de si o espesso
pensamento de ser, de poder ser uma assassina. O calor fica ruim na cabeça, a molidão
se alastra pelos membros que não querem bater no saco e sim no estômago, a ver
se tiram aquele enjoo que toma conta, se tiram a origem de tudo.
Por
uns dois ou três segundos teme ser flagrada por Tânia, a instrutora, mas sabe
que em verdade não irá socar a própria cabeça. É só vontade e isso dói. Seria melhor
se acabasse com tudo, a cabeça parando pra sempre. Ou ao menos se pudesse desatarraxá-la
e engatar outra no lugar, menos defeituosa.
Se
soubessem como é difícil ser pura e boa o tempo todo. A vista escurecia e a
bondade parecia lhe afundar. Queria padre Daniel agora, ele não entenderia, mas
talvez conseguisse tirar de dentro dela a maldade. Ao menos por ora. Talvez a
acalmasse com uma hóstia, uma hóstia boa sem gosto e pura de verdade pela
ausência de sabor, cheiro, cor. A pureza completa. E ainda a mandasse rezar
algumas ave-marias e outros tantos pai-nossos e a reza a envolvesse e ela
conseguisse fazer a cabeça parar.
Esmurrava
com mais força o saco até que, quando viu, o tinha feito arremeter contra si, acertando
sua cabeça e sendo atirada ao chão, a vista preta, os lábios arroxeados, o
sangue pingando do nariz, ou era da sobrancelha direita. A água brotando dos olhos,
água que não era santa nem pura. Tânia se aproxima correndo e pergunta
justamente se estava tudo bem, passando a mão pelo rosto de Cândida, deformado
pelo choque e pelo choro. Faz um carinho em seus cabelos desgovernados e ela
olha para a instrutora suplicando a ajuda que sabe que a outra nem ninguém pode
dar.
Cândida
era boa na luta, fazia dois anos e meio que treinava diariamente, era o que
ajudava pra mente funcionar mais devagar. Tânia é que a havia introduzido na
luta, explicado que era bobagem achar que era só coisa de homens, hoje em dia
as mulheres fazem tudo e ainda podem ser melhores e até mais fortes que os
homens. Tânia era forte e era boa. Passava o dia treinando, mas não era burra
como se pode pensar que quem lida com coisas do corpo é. Cândida havia
aprendido isso aos poucos, era mais um de seus preconceitos que caía.
Tânia
sabia coisas e coisas do mundo e da vida, uma sabedoria que poucos tinham.
Cuidava da filha adolescente sozinha. Um namorado que às vezes lhe sabotava,
mas no final ela é que o sabotava. Não gostava muito de estudar, mas fazia de
tudo para que a filha gostasse. Ela era boa. Mas agora era um obstáculo. Cândida
não era tão boa assim e talvez nunca conseguisse ter uma filha, não era capaz
de ser mãe. Tânia era odiosa, a culpa na verdade era dela. Claro que era. Ela é
que não tinha conseguido fazer a cabeça de Cândida parar. Era isso que Tânia
tinha que ter feito. A culpa toda dela, todinha, e o ódio despontando sem medo,
puro, inteiro, em jorros.
A
instrutora continuava acarinhando os cabelos de Cândida e perguntava de novo se
estava tudo bem, mas fazia isso com uma voz baixa e que procurava esconder o
medo que ela própria tinha de a aluna haver se machucado seriamente, seria um
problema para sua academia, sua profissão, talvez até perdesse tudo. Cândida
percebia isso e a raiva aumentava. A outra não era verdadeira. Era cínica,
interesseira. E sentiu nojo daquela mão. Um nojo tão intenso que foi ganhando
forma e crescendo e mobilizando seu braço fazendo-o ficar dormente até
explodir, os olhos enxergando ainda embaçados, escurecidos, as luzinhas faiscantes
pareciam se espalhar à sua frente e o soco atingindo em cheio a cabeça de
Tânia, acertando o olho esquerdo da instrutora e fazendo-a parar o carinho e as
perguntas estúpidas.
Com
bolinhas ainda mais coloridas aparecendo à sua frente, Cândida se levantou,
pegou a bolsa e escarrou na cara intumescida da instrutora. Mas onde é que estava
a coceira que não passava? Ah, era no pé. Um chute, foi. Pra sempre. Agora
tinha que se mandar de vez. A cara de Tânia transformada, talvez apenas ligeiramente
menos feia do que o buraco produzido pelo espeto de cabelo com que Cândida, rumando
pro carro e tentando apenas manter a respiração quieta, cutucava sem parar a
fina pele abaixo dos seus olhos de safira. Precisava conseguir voltar a
enxergar direito pra poder dirigir e voltar pra casa sem cometer nenhuma
barbaridade.
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