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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A odisseia do eu (Texto de Lohan Lage Pignone)


Você já foi à lua?
Andei meio ausente, se é que se possa ser ausente pela metade, porque o caos é o nada até que alguém provoque uma fagulha e proclama-se autor da luz. Somos sempre meio assim, meio assado. No afã de ser meio isso, meio aquilo, já somos dois e cada uma das metades anseia por mais uma fatia do bolo, e outra, e esmigalha-se, desatomiza-se, e o que um dia fora sistematicamente inteiro agora se fraciona em terços, quartos, sala de estar, não estar, entre-lugares, quintas dimensões. No fim das contas, onde está?
Importa onde? No esconde-esconde da vida, vasculhem meu paradeiro no bosque das entrelinhas, sem tatos rasos. Em cada página, uma pegada. Cada linha, um assopro. No fim, a interrogação de como acaba tudo isso.
Quem escreve a sua regra?
Pai, mãe, em nome do Pai, constituição, sermão, PARE, “não pise na grama”, juramento, imposto de renda, choro do bebê, pedágio, genética, exemplo, PM, “o que você quer ser quando crescer”, teste vocacional, boletim escolar, moeda, “não pode”, beba Coca-Cola, vestibular, pré-vestibular, Rivotril, a maçã, Excel. 
Faceta, do latim facette, ou face pequena. Quantas faces constituem a sua face? Me fez retomar a infância, comendo aqueles biscoitos recheados com faces felizes desenhadas. Riam sem nem saber por quê. Riam, talvez, pois escaparam, finalmente, do pacote. Respiraram a liberdade. Mas não por muito tempo. Não por muito tempo... até meus dentes triturarem, faceta por faceta, tragando até mesmo seus recheios, suas essências mais intrínsecas;  não sabiam “que virar pelo avesso era uma experiência mortal”. 
Tampouco eu. 
Ontem mataram um ator. Fui eu, a vítima fuzilada no palco público da vida. Também me viram assim, amiúde, nos palanques, jorrando a voz, em um amálgama com o mundo e comigo mesmo; “religare, religare”, ecoa, mas não no interior dos templos, mas do eu, que me lanço do penhasco para me descobrir no vôo, não obstante a queda que está sempre à nossa espera. O baque e a poeira que sobe proporcional às toneladas da queda, e mais um homem morto, a quem recolhem o corpo e inscrevem em sua lápide moral os dizeres de um pai de família assalariado em vendas (sussurram à boca miúda que um homem comum se perdeu em vários, abandonando o tudo, tombando no nada; pobre homem, um vendedor tão eloquente, este era o seu talento...).
Morri por ir além do próprio eu, assumindo a nave multifacetada do ser, transpassando a atmosfera, alcançando a órbita, sem tempo de chegar à lua. É certo, o homem nunca pisou na lua. Tudo uma farsa!
Melhor falar mais baixo. As entrelinhas têm ouvidos. 
Em tempo: esse texto era para ser sobre Kubrick e sua odisseia.
Ganhou uma nova faceta. Poética, talvez. Que assim seja.
Os sinos tocam.
Amém.
(era uma vez um poeta).

(Foto: Odisseia de Kubrick, Group Show 2012, em pedrotudela.org)



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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16