(Aviso:
o conto abaixo é uma ficção. Nomes de personagens, cargos que
ocupam, caráter, características emocionais e acontecimentos em
nada refletem a realidade. Eventuais semelhanças devem ser encaradas
como mera coincidência.)
“[…]
não podendo esses soberanos furtar-se ao ressentimento
deste ou
daquele em particular, deviam, primeiro que tudo,
forçar-se a agir
de modo a não serem odiados pela
coletividade, e, na impossibilidade
de evitá-lo, deviam,
pelo envide de todos os esforços, escapar à
ira das
corporações mais poderosas dessa coletividade [...]”
Nicolau
Maquiavel, em O Príncipe
Não
vamos deixar que o pessimismo vença a esperança.
Ao
encerrar a frase, mesmo com o cenho franzido e tendo empregado
naquele breve discurso num tom áspero, levantou a mão em um gesto
automático de agradecimento e virou as costas em direção aos
bastidores, deixando para trás uma torrente de perguntas de
repórteres e as vaias já constantes do público, agora
amplificadas.
A
senhora acredita mesmo no que diz?
- ainda ouviu antes de deixar completamente o palco, e teve vontade
de retornar para encarar o dono daquela voz petulante, mas logo o
assessor pousou a mão sobre seu ombro, conduzindo-a para dentro, e,
ao pé do ouvido, lhe deu uma notícia que a fez imediatamente
sobrepor aqueles angustiantes minutos passados.
A
outra pesquisa saiu. Confirmou a tendência pra pior. Oitenta por
cento, e essa não é a pior parte.
Ela
deixou-se desabar sobre a primeira cadeira que viu à sua frente.
Colocou as mãos embaixo das coxas, escondendo um tremor de
nervosismo, e fitou o chão por um tempo. Quando conseguiu digerir,
ao menos em parte, aquela informação, olhou para o assessor e viu o
sentimento estampado naquele semblante que tanto repugnava quando os
mais íntimos, nesses tempos de crise, lhe dirigiam.
Tira
essa piedade do rosto. Preciso de um plano de comunicação
estratégica, não de sentimentalismo barato.
- sentenciou, de forma agressiva.
O
homem, já de meia-idade e louvável carreira em gestão de
comunicação política, enrubesceu. Enfiou a cara no tablet,
em busca de mais detalhes sobre a pesquisa. Mesmo com a vasta
experiência, nunca conseguia prever as reações de sua chefe. Os
destemperos,
como comumente chamava a idiossincrasia na articulação com aliados
e na definição de metas fiscais e econômicas, já faziam parte do
folclore em torno daquela mulher, e municiavam o arsenal bélico da
oposição – sempre disposta a se ater em fatores emocionais.
Como
som de fundo, as vaias continuavam. Ela se levantou, decidida,
reclamando em voz baixa, até subitamente se autodirigir uma pergunta
retórica:
Como
eles podem não entender o que eu faço?
- a humildade na voz disfarçava a altivez sublimada, durante toda
sua trajetória política, como combatividade. - O
que esperam que eu diga?
- continuou, agora com o inconformismo.
Antes
que o assessor pudesse abrir a boca e entrar em um choque
desnecessário, a secretária, apressada, veio com o telefone celular
na mão, e falou em tom urgente:
O
senhor vice-presidente deseja falar com a senhora.
- e estendeu-lhe o aparelho.
Quem
disse que eu quero falar com ele?
- retrucou, sabendo que seria ouvida, pois o bocal estava destampado.
A
secretária puxou o telefone para junto de si, permanecendo ali,
estática. O assessor baixou o tablet
e decidiu que deveria intervir.
Presidente,
ao menos ouça o que ele tem a dizer. Confiável ou não, ele é
nossa única ligação com a base.
- disse em tom firme mas apaziguador, tentando não gaguejar para ser
imediatamente cortado. Continuou: - Só
lendo as entrelinhas da retórica do homem pra tentarmos ter uma
ideia de como estão as coisas às nossas costas.
- finalizou, finalmente conseguindo respirar novamente.
Nossas
costas?
- indagou, irônica – O
meu tá na reta e você quer se livrar de responsabilidade? Aliás,
você e esses outros que estão por aí e se dizem meus assessores,
não conseguem passar na frente desses macacos velhos da politica nem
com reza brava. Que turma de incompetentes que eu tenho. Isso que eu
fui herdar… - arrependida
de ter usado a palavra herdar,
desconversa, se dirigindo à secretária: - Diga
pra esse senhor que eu falo com ele daqui há alguns minutos.
- Voltando-se para o assessor – Vamos
embora, isso aqui já deu!
Ela
marchou a passos firmes seguida por sua pequena comitiva, que trocava
olhares furiosos entre si. Tentavam creditar a culpa por aquele
comportamento histriônico sobre as costas um do outro, como uma
maneira de tirar um pouco do fardo do pesado dia a dia, mas sabiam
que aquela mulher podia ser pior que uma força da natureza – se no
Brasil ocorresse furacão, certamente teria um com seu nome.
Ao
colocar os pés na rua, alguns poucos apoiadores que se aventuraram a
ir até aquela verdadeira panela de pressão que se tornara o ginásio
de esportes da cidade governada pelo seu partido, lhe gritavam
palavras de apoio. Ela não pode deixar de abrir um largo sorriso;
afinal,
há quem me compreenda,
pensou, e logo foi trocar cumprimentos com as pessoas que disputavam
espaço por entre os seguranças.
Em
poucos segundos, os primeiros manifestantes que estavam dentro do
ginásio começaram a se deslocar para a rua por outra porta, e, ao
verem a cena de afagos, precipitaram-se correndo para lá, já
gritando palavras de ordem e, um ou outro, soltando as já
corriqueiras vaias.
Precisamos
partir. A situação vai ficar crítica.
- falou o assessor, em tom grave, já empurrando-a em direção ao
carro presidencial.
Enquanto
se ajeitou no banco traseiro, com a secretária ao lado e o telefone
celular na mão, a porta fora fechada com força, e o assessor correu
para entrar no banco do carona. Quando olhou pelo vidro traseiro,
enquanto o carro partia, viu que o local onde estava tinha se tornado
um palco de batalha entre seus defensores e acusadores.
Mas
onde isso vai parar?
- lançou no ar, apenas por desabafo.
Isso
nós já sabemos, presidente.
- asseverou-lhe o assessor, irritado.
Ela
girou o corpo para frente com uma rapidez que ele nunca antes
conhecera, e o encarou pelo retrovisor dianteiro. Ele desviou o
olhar, em sinal de respeito, mas deixou-se ficar quieto. Sabia que
tinha lhe atingido a espinha dorsal, e não havia sido por maldade.
Apenas constatou uma realidade que ela fingia não ver. E ela sabia,
por isso não retrucou de imediato.
A
presidente abriu um pouco a janela para deixar o ar entrar, mas
parecia mesmo querer anuviar o ar pesado que se instalara dentro
daquele veículo, e que já vinha respirando desde as eleições.
Tentando acertar no timing,
a secretária tomou coragem:
Presidente,
- indicou-lhe o telefone assim que ela olhou –
o senhor vice disse que esperaria na linha.
Contrariada,
pegou o celular nas mãos, passando-a de uma para outra, até que o
levou ao ouvido.
- Escuta
aqui, Médicis, se vocês acham que vão me intimidar mandando o
cachorrinho de vocês cagar sobre a minha imagem em tudo que é mídia
golpista, estão muito enganados!
- cospe as palavras.
- Com
o perdão da palavra, senhora presidente –
inicia, do outro lado da linha, o homem que é chamado pelos
partidários de sua imediata, jocosamente, de ´Mordomo de Cemitério`
-,
a dona do canil é quem precisa, primeiro, tratar bem os seus
cachorrinhos, para que eles não saiam por aí em busca, dentro da
matilha, da liderança que todo animal está fadado a se submeter ou
conquistá-la para si.
- fez uma pausa dramática, escutando a respiração cada vez mais
apressada de sua interlocutora – É
a lei da natureza e também da política, presidente.
- Essa
pode ser a lei de vocês, mas a minha é a do povo que me elegeu.
- gritou, fazendo o assessor balançar a cabeça em negativa.
- Que
nos elegeu, a senhora quer dizer.
- corrigiu-a, com ironia.
- Vice
no Brasil não é nada. O que você é? Um assessório eleitoral, e
só.
- riu-se da zombaria que foi capaz de criar sem precisar de um
marqueteiro político.
- Eu
não definiria como assessório alguém a quem se precisa com
urgência, mas posso estar enganado. Afinal, com cinquenta anos de
vida pública e mais uns tantos de idade, é normal que a senilidade
nos afete aos poucos.
- Afeta
a você, porque eu estou em plena capacidade das minhas faculdades
mentais.
- Mais
uma vez, peço perdão, mas nesse momento preciso discordar da
senhora.
- Como
ousa? Está querendo dizer que eu sou maluca?
- Jamais.
Não foi essa minha intenção. O ponto é que a senhora se colocou
dentro de uma redoma, intransponível por dentro e por fora, e não
se deixa afetar nem toma atitudes de repercussão externa, o que, a
meu ver e ao entender do meu partido, é uma falta de discernimento
de sua parte em relação a situação que se encontra. Se é de
forma deliberada ou não, só o tempo mostrará.
- Você
me causa repugnância, Médicis.
- foi a única frase que encontrou mais parecida com um rebate dentro
de seu atual repertório.
- Lamento
saber. Mas certamente esse não é o pior sentimento que a senhora
terá sobre mim e o carregará consigo durante seus anos de limbo.
- Isso
é uma ameaça, Médicis?
- frisou bem o nome de seu contendor, como se o tom usado pudesse lhe
causar medo.
- De
maneira alguma, senhora presidente. Mas pode-se dizer que é uma
notícia em primeira mão.
- pausou por um instante, e deixou-se saborear aquele silêncio –
Seu padrinho é um homem muito generoso, e realmente é alguém que
sabe negociar.
- Você
está me passando a perna, seu enteado da ditadura…
- falou entre os dentes, furiosa.
- Gosto
dos refletores, não posso negar, e dou lá meus espetáculos, mas a
minha verdadeira vocação é para os bastidores. Convivo melhor às
sombras. É lá onde recarrego minha vitalidade política!
Agora,
com a sua licença, presidente, preciso desligar.
Ela
permaneceu com o celular ao ouvido, ainda tentando digerir as últimas
palavras. Já havia compreendido o mote daquela bizarra conversa, se
é que podia chamá-la assim, mas o que não encaixava era o ponto
onde seu padrinho entrava nessa história. Estaria
o ´Mordomo de Cemitério` jogando-a contra seu único alicerce?,
perguntou-se, ou
há uma jogada de mestre para me tirar dessa situação?,
ponderou, quase deixando escapar um sorriso de canto de boca.
Saiu
do devaneio quando o assessor fez menção de lhe entregar o tablet.
Ante o olhar inquisidor, ponderou:
Do
seu padrinho. E-mail.
Pegou
o equipamento nas mãos e puxou os óculos do bolso da camisa.
Colocou-os e leu. O assessor a fitou novamente pelo retrovisor
dianteiro. A secretária, curiosa, conseguiu firmar os olhos e ler as
miúdas palavras. A presidente leu e releu aquela breve mensagem,
continuando com o olhos grudados na tela, mas já sem prestar
atenção, perdida em conturbados pensamentos.
Fim
da linha.
- brincou o motorista, informando que haviam chegado ao hotel onde
passariam a noite.
Foto: Palácio do Planalto, por Flávio Serafini. Usada sob licença Creative Commons - modificada para negativo. Original: https://www.flickr.com/photos/serafa/8249712637
1 comentários:
Gostei sim. Parabéns!
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