A porta da sala continua entreaberta. Diariamente
passam por ela fantasmas, fragmentos de um passado tão recente e doce, como se
a despedida se encontrasse em rascunho. Tua toalha úmida permanece
irremediavelmente sobre a cama. Ainda sinto teu olhar severo repreendendo-me a
cada novo cigarro aceso.
Continuo só. Os discos não me agradam e
os livros me aborrecem, portanto, o desalento tem sido minha única distração.
Nossos amigos não me telefonam mais, nem sequer aparecem. Seriam todos apenas teus?
Na falta de um ombro, recosto-me à coluna da sala e mergulho nos copos que
insistem em partir-se e cortar meus desatentos pés. Passeio às escuras. Às vezes,
diviso tua silhueta, misturada às sombras que vivem em minha companhia desde
que me disseste que meu amor não passava de um exílio viscoso. Partiste, então,
para habitar outro desavisado.
E esse maldito cão do vizinho que não
para de latir! Por que alguém não lhe aplica uma porretada e silencia-o de vez?
Ai! O que digo? Coitado! Coitado do cãozinho. Estará com fome? Estará sozinho?
Que tipo de gente abandona um animal indefeso? O que fizeste para que te
largassem assim? Mordeste alguém, não foi? Sei, sei que isso não é motivo
suficiente. Mas digo-te: Abandonaram-me por bem menos, rapaz. Vem cá. Lambe as
lágrimas que se cravam em minha barba de homem feito enquanto aliso tua
barriguinha peluda... Seria bom para nós dois, não seria? Ai, não, não, não! Para
de latir, maldito cachorro! Mesmo que tu rosnes, mesmo que tu uives a noite
inteira, ela não voltará!
Tenho me ocupado de coisas
extravagantes, como pinicar contas telefônicas e segurar baratas vivas dentre
os dedos dos pés. Há dias desliguei a geladeira e deixei a porta aberta.
Trata-se de um experimento. Quero saber qual de nós apodrecerá primeiro, os
orgânicos ou eu. Um cheiro acre adensa-se no ar, uma nuvem de moscas paira
sobre minha pele feito abutres atentos à carniça. O quê? Queres que eu levante
e descerre as janelas? Não, meu bem! As janelas, quando abertas, transformam-se
em quadros pavorosos, onde revejo retratada ― com pouca tinta, em tons pastel ―
a tua ingrata despedida.
A casa por completo está em coma, amor.
Sem o ar de tua presença, as portas não batem, a sala asfixia em abandono e
medo. Por que não partiste por inteiro? Os teus pedaços estão por toda parte,
como grãos de gelo. Volta, antes que o remorso insista em derreter o que me
sobrou de consolo. Eu não irei ferir-te com o meu perdão, amor, eu juro. Os
ladrões perceberão em breve o meu desleixo, eu me esqueci das trancas! Retorna antes
que me roubem o que não conseguiste levar dentro de ti.
(Obs.: Fotografia retirada do banco de imagens do site http://www.davidprior.net/portraits)
Emerson
Braga
5 comentários:
Eu não conhecia esse seu lado amor/abandono. Mas achei igualmente intenso e belo. Com a beleza do desespero, da entrega, da solidão, das coisas que chegam gradual e cruelmente ao fim. O texto conversou comigo. *Essa foto parece com as do Lee Jeffries.
Parabéns, Emerson, por mais esse belo texto! Você escreve demais, amigo!
Não é só mais um texto narrativo, aqui presencio algo novo no seu repertório cada vez mais polifônico. A densa atmosfera é econômica, poéticamente sentida.
Grande e exímio escrito tu és, Emerson! Raramente encontra-se alguém com essa verve tão efervescente e inspirada! Abraço, meu amigo!
Meus queridos Cínthia, Baltazar, Cecília e Arão, obrigado pelo carinho de sempre. A leitura de vocês engrandece, e muito, meu trabalho. Abraços mil! Cínthia, a fotografia aproxima-se bastante com o trabalho do Lee Jeffries, mas acabei descobrindo que se trata de uma obra de David Prior. Segue o link: http://www.davidprior.net/portraits
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