Maria dos Anjos foi encontrada morta na azinhaga de Santa Luzia, uma vereda que serpenteava pelos terrenos entre as actuais avenidas Gago Coutinho e Rio de Janeiro.
Foi o cabouqueiro António da Silva quem
encontrou o corpo.
***
António da Silva terá estremecido a ver o
cadáver. Terá mesmo apressado o passo a dar a volta longe do corpo ali
estendido.
Tão novinha! Quase uma menina!
Seria António da Silva ensimesmando e logo
a dirigir-se para a esquadra mais próxima, ele que nem saberia que muitas varinas vinham da Murtosa, de Estarreja, de Ovar e da
cidade onde havia uma ria. Vinham por aí abaixo no comboio que tinha sido
inaugurado.
António da Silva nunca tinha andado de comboio.
Nem de carro ele tinha
andado a não ser, uma vez, no carro de mula do senhor Aniceto para quem
trabalhou na construção duns caminhos.
Gente da faina do mar,
vinham em busca de melhor pão e melhor vida. Muitos alugavam um canto naquela
zona da cidade ao pé do Tejo, ao pé do descarrego de peixe da Ribeira. Havia muitas varinas a morar na Madragoa.
varinas de Lisboa 1909
Não saberia disso
António Silva nesse fim de Julho do ano de mil novecentos e oito, ele que tinha
assistido a tudo o que se dera no Terreiro do Paço.
Tinha sido em
Fevereiro, e tinham sido os tiros e os corpos ensanguentados.
O cabouqueiro tinha
presenciado, ele que iria congeminando que talvez a rapariga também lá tivesse
passado naquele fim de tarde. Que talvez ela também tivesse visto.
Talvez o seu pregão
tenha ressoado com os tiros!
Era António Silva entaramelando pensamentos enquanto ia buscar quem olhasse pelo corpo descomposto jogado, morto, numa curva mais
sombria da azinhaga.
António Silva
perturbado desde que presenciara o regicídio.
Talvez a rapariga
também lá tivesse estado, mas nem tivesse visto o que ele tinha presenciado,
que ela estaria distraída a olhar uma água furtada de onde lhe atiravam um
cordelinho e que enchesse a cestinha com carapau miúdo.
Fresquinhas, teria
apregoado a referir umas cavalas, e o pregão teria ribombado juntamente com o
som dos disparos.
António Silva a tecer
tamanhas conjecturas nem saberia de homens a quererem mudar o curso da História
e, no entanto, tinha visto os corpos sangrando ao lusco-fusco das cinco da
tarde, daquele mês de Fevereiro de dias ainda curtos.
Vinha atravessando a
também chamada Praça do Comércio, o sachinho ao ombro e, nesse por acaso, ouviu
os disparos e depois viu o sangue e viu os cadáveres ainda estremecendo.
Dormia mal, desde
então, que ele acordava a ouvir silvos de balas e sonhava com os corpos
tombados da vida que se lhes esvaia com o sangue.
António Silva a deixar
a azinhaga e a seguir em direcção à esquadra do Campo Grande. Leva nos pés uns
sapatos mancos e rotos e sem cordões. Vai estonteado e receoso e confundido.
Àquela hora o sol ainda abrasa e ele cola-se aos muros na busca nem que seja de
uma nesga de sombra.
E devaneia.
Como desejava ter visto
a varina, ali, quase esquartejada, na tarde em que assassinaram D. Carlos!
António Silva teria
fugido com ela até à Rua das Pretas, e nem ele teria presenciado tanta morte,
nem teria permitido que a varina fosse, agora, apenas mais um cadáver.
António Silva que dali
a nada há-de contar ao guarda: está um corpo morto na azinhaga. E, a dizê-lo,
abrirá o rosto num sorriso tolo.
E o guarda, com um
bigode ainda farto do almoço a avaliar pelos restos que lá estão dependurados,
dirá, apenas: acompanhe-nos, e já a chamar para dentro: Russo! que será o outro
guarda, e irão com António fazer o caminho de volta à azinhaga.
Irá António Silva
contrafeito, que ele quereria ter dito, como viera ensaiando pelo caminho: o
corpo é duma varina e é quase uma menina.
O cabouqueiro que, a
anunciar que tinha encontrado um corpo morto, riu com o mesmo riso que ficou
para todo o sempre na fotografia que a revista Ilustração Portuguesa publicou a
dezanove de Agosto dando notícia do crime. No cabeçalho: Crimes célebres; e,
por baixo, o título: A varina Maria dos Anjos.
António Silva que
depressa lhe esquecerá o nome.
***
Debruçado sobre o
cadáver descomposto, o guarda comove-se: reconheceu a filha de Ana Augusta.
Tenta cerrar-lhe os olhos verdes muito esbugalhados, e grita ao outro guarda
que corra a buscar a mãe da defunta. Que a busque na rua do Cura, à Madragoa,
que ela venha identificar o corpo. Reclama, ordena, explica, dá pressa.
Ana Augusta que há-de
espantar-se que a sua menina tenha ido para tão longe, que se tenha afastado
dos locais onde costuma fazer venda.
Nas hortas, sim, mas
mais perto da cidade, dirá ela entre dois choros, ainda não sabendo que o corpo
da filha, encontrada no brejo, tem as saias, que elas usavam sempre longas,
alçadas sobre o ventre e nuas, escancaradas, as coxas e as virilhas.
Descalça era como
andavam as varinas, mas não seria o caso de Maria dos Anjos, ao menos no dia do
crime. Ali assassinada, tinha, repuxadas aos tornozelos, umas meias pretas, e
no pé direito, ainda calçada, uma soca. Uma dessas socas com sola de madeira e
uma tira cravada com brochas. Uma tira vermelha, presa com doirados, a traçar o
pé de menina de Maria dos Anjos.
As socas que lhe deu o
Ramiro, dirá a mãe, e os guardas hão-de inquiri-la: quem é esse Ramiro e qual a
relação com Maria dos Anjos.
Ana Augusta que
comentará que o peixe espalhado na azinhaga é quase todo o que a sua menina
trouxe para o giro. Ela mesma ajudara a fazer a canastra, ela mesma arrematara
o preço de cada variedade. E Ana Augusta clamará, que a filha nem terá tido
ensejo de vendê-lo.
Nessa manhã de
sexta-feira, criadas e senhoras, das casas e das hortas, terão estranhado que o
ar não tivesse estremecido com os pregões da varina, e ao almoço desse dia
trinta e um de Julho terá faltado peixe em algumas mesas.
Maria dos Anjos que, no
entanto, tinha ido cedinho a fazer a volta. Ela a sair da Ribeira ainda quase
madrugada, terá sido morta muito antes daquelas três da tarde em que foi
encontrada pelo cabouqueiro.
E a comprovar
que morreu antes do almoço, o pedaço de pão embrulhado em papel de jornal que
encontram junto ao corpo, intacto.
Nem comeu a buchazinha,
chorará a mãe.
A sua menina nem terá
tido o tempo de voltar a ter fome depois do café e da broa ingerido quase de
madrugada, já de canasta em cima da sogra.
Não tivesse António
Silva decidido atalhar caminho pela azinhaga, demoraria, ainda mais, a ser
descoberto o corpo. E, a dar-se, em casa de Maria dos Anjos teriam estranhado
tanta demora. Sobretudo os irmãos, e sobretudo o mais novito habituado às
brincadeiras da irmã mais velha. Ana Augusta, essa, demoraria em preocupar-se,
que a mãe de Maria dos Anjos havia de supor que a filha ficara tagarelando com
alguma criada, e que, assim, talvez trouxesse uma broa fresca, umas cebolas, ou
lhe dessem uma peça de roupa mesmo que já esgaçada. Demoraria em preocupar-se a
mãe daquela filha já quase casadoira.
***
Quando o guarda bateu, estridente, na porta da loja que os pais de Maria dos Anjos tinham alugado, Ana Augusta gritou lá de dentro: entre, e o guarda sem um preâmbulo que adoçasse, foi informando: a sua filha foi encontrada morta na azinhaga de Santa Luzia. E Ana Augusta a romper em gritos, e ainda assim ripostando, querendo acreditar que nem fosse tal e qual: que lá podia ser a sua Maria dos Anjos! se a rapariga mal chegava ao Areeiro que lhe dava medo de ir adiante, quanto mais andar em Pote d'Água!! Mas o guarda intimava-a: que fosse confirmar, e dava-lhe pressa, e a mãe de Maria dos Anjos limpou o choro na manga da blusa e gritou a chamar os filhos que andavam a brincar na rua. E até disse quatro nomes pois, atarantada, chamou também pelo mais novo que tinha deixado dentro de casa. Que dissessem ao pai que ela ia com o senhor guarda por modo da mana. E o mais crescido atreveu-se: que lhe aconteceu? Mas já Ana Augusta seguia caminho atrás do guarda a jogar o xaile pelos ombros e a compor o cabelo debaixo do lenço. A cada passada firme que Ana Augusta dava na calçada quente da rua do Cura, a saia balançava-lhe desnudando-lhe ainda mais os pés descalços.
Ana Augusta
calcorreando as ruas da capital até que fossem apenas hortas, até que fosse a
azinhaga recosida nos muros e nos canaviais das bermas, e lá estava a sua
menina estirada no pó e, à altura do sobrolho, a carinha rasgada por faca ou
por tesoura.
E depois, por momentos,
naquele esconso da azinhaga, terá sido apenas Ana Augusta e o seu desespero,
todo ele teatro, todo ele exagero.
Que mal te fizeram,
filha?!
Assim terá ela gritado
a debruçar-se, a querer abraçar o corpo.
Mas os guardas
ter-lhe-ão impedido o gesto, não fossem, assim, apagar-se vestígios, e
apontavam-lhe o lenço apertado com dois nós em volta do pescoço: é da sua
filha, esse lencinho? e Ana Augusta que não senhora, que desconhecia, mas que a
sua menina trazia, isso com toda a certeza, um par de brincos de ouro e um
cordão que lhe tinha dado a madrinha de baptismo.
Roubaram-lhos, ulularia
a mãe de Maria dos Anjos a limpar ranhos e lágrimas na ponta do xaile.
E repetia, soluçando
sílabas: roubaram-lhos.
Ana Augusta, mãe da
rapariga assassinada, gritando impropérios e desgostos, já os guardas arrumavam
o corpo numa padiola de madeira tal e qual a fotografaram a entrar na morgue,
tal e qual aparece nos jornais da época.
Que tinha sido furto,
terão murmurado, entre si, os guardas, ainda o corpo não tinha sido visto pelo
médico a verificar se, sim ou não, tinha havido cópula ou se, de outro modo,
tinha o corpo sido molestado.
O corpo da varina que
esperaria essa noite de sexta e que passasse o outro dia e ainda o dia do
Senhor, e só depois seria o director da Morgue de Lisboa a rasgá-lo, as suas
mãos técnicas a tornar possível garantir que o quem quer que tivesse sido, e
por qualquer que tivesse sido o móbil, teria morto Maria dos Anjos por asfixia
como mostravam as lesões observadas nos pulmões e as equimoses na pele, no timo,
no coração e nos rins.
Assim, tal e qual, se
pode ler na notícia de várias páginas que a revista Ilustração Portuguesa,
edição semanal do Jornal O Século, deu a público no seu número cento e trinta.
A autópsia não dará por
concluído que tenha havido cópula.
Mas que o corpo foi
molestado, disso são prova as contusões na zona interior das coxas e o modo
descomposto como foi encontrado o corpo.
O corpo de Maria dos
Anjos que ficará aguardando na Morgue de Lisboa.
E, enquanto isso, será
a mãe de Maria dos Anjos a acordar a Madragoa com a expressão incontida do seu
incomensurável desgosto.
E o povo irá juntar-se:
varinas e pescadores e tantos outros; sobretudo varinas que se acolheriam, num
desgosto partilhado, numa raiva surda, a entulharem os contrafortes da Morgue
de Lisboa. Sobretudo mulheres, sobretudo vendedoras de peixe como a filha de
Ana Augusta e ela própria.
A colónia varina ali em
peso.
E anoiteceria e abriria
o dia em uma e outra madrugada.
Uma mole de gente a
velar o corpo da varinazinha assassinada, sabiam lá onde andaria o autor de tão
terrível crime, e quanta vingança aventada de mistura com clamores de justiça.
E no funeral que se
faria depois desses dois dias longos, seria ponto-alto o branco dos vestidinhos
envergados pelas meninas da idade de Maria dos Anjos.
O branco virginal a
cerrar ainda mais o luto dos xailes e dos lenços, e o negro dos fatos humildes
de filhos, cunhados, genros, pais, irmãos, maridos, primos e sobrinhos.
Poderiam ter escrito,
assim, em algum jornal.
O branco virginal, como
era esperado de Maria dos Anjos nos seus treze anos.
***
Hoje, a conhecer a história triste da
varina, lembrei-me de ti, Maria Ida.
Lembrei-me de ti a contar-nos que tinhas
sido assaltada: roubaram-me aqui, no “meu bairro”, dizias.
O “meu bairro” era ali mesmo onde, antes,
atravessava, ziguezagueando, a azinhaga de Santa Luzia. Talvez tenha sido disso
que me lembrei do teu assalto.
Ou talvez me tenha lembrado por terem sido
dois casos sem autor confesso.
Ou terá sido outro, o motivo de eu te ter
lembrado.
***
Acabaras de estacionar o carro nas
traseiras do liceu onde tinhas estudado, um quarteirão inteiro do bairro de
prédios baixos que os teus familiares tinham ajudado a construir. Gente que
viera de terras debruçadas no Nabão a largar as sovelas e outros artefactos com
que cada um se faria mestre sapateiro como tinham sido seus avós e pais. Ali,
na capital do reino, seriam, primeiro, trolhas e, depois, construtores; e
casariam; e as esposas usariam luvas e chapéu e iriam com eles em excursões a
Fátima, e mais tarde iriam a Roma de autocarro, e passariam férias nas
acomodações dum inatel.
Fazia uma manhã soalheira naquele Janeiro, e o pátio
do recreio e o campo de jogos, um e outro ainda buliçosos do intervalo, estavam
ali, a meia dúzia de metros do local onde tinhas estacionado. Tinhas buscado,
mais do que uma sombra, um local próximo, como desejavas sempre e, se possível,
que o carro ficasse no passeio em frente da casa onde residias numa transversal
à Avenida da Igreja. Tinhas a carteira no assento ao lado e ficaste uns
instantes ver qualquer coisa que nunca precisaste. Tinhas a porta do teu lado
meio aberta, garantiste.
Mal dei por ele, contaste-nos, um ror de
vezes, e que o homem puxou a bolsa que estava “do outro lado”.
A bolsa que estava do lado onde o carro
ficara quase encostada a um muro de quintal, que os prédios ali no bairro
tinham quintais que serviam aos vários moradores. Lá deixavam crescer uma
árvore de fruto, limões ou nêsperas era o mais frequente, e alguns criavam uma
ou duas galinhas para os ovos.
Descreveste-nos com ênfase que
lhe seguraste o braço mas que o indivíduo se soltou e andou lesto, e que
tu gritaste.
Assim terás dramatizado na esquadra, a
apresentar queixa do assalto. E ficarás irada, que o polícia sorriu a querer
saber como é que o “tal homem” conseguiu retirar a carteira que estava do lado
oposto, minha senhora?
É que um outro corpo debruçado sobre o teu
corpo, Maria Ida, ter-te-ia roçado, magoado, até, com a ponta dum cotovelo, ou
com uma aresta da tua mala, quando a retirasse! E tu nunca disseste, nunca
mencionaste.
***
Houve uma única pessoa suspeita do assassinato de Maria dos Anjos.
Em notícia curta da
Ilustração Portuguesa, duas semanas após o extenso primeiro artigo, o
jornalista deixou escrito, referindo Josefa Maria Colares: “testemunhos
acabrunhadores (…) se conjugam para a comprometer".
Mas adianta que a
mulher persistia numa negativa intransigente.
O certo é que nos arquivos este caso nem
aparece.
Talvez, buscando, haja registo da
participação do cabouqueiro, mas o caso da varina assassinada foi esquecido.
Nada se sabe acerca do
que terá sido investigado. Pode até supor-se que tenha havido provas
suficientes contra Josefa Maria, mas que o pai de Maria dos Anjos, um digno
pescador de rede vindo de Estarreja, e nascido lá por perto, Pedro José da
Silva de seu nome, tenha rogado que não desvendassem, que a justiça fosse
preterida em nome do bom nome da sua filha morta e da sua família.
Pode supor-se que Maria dos Anjos tenha ido para tão longe, não uma vez,
mas uma vez e outra. E nem apregoando, que ela talvez andasse encantada por
palavras doces e carinhos, e promessas. Maria dos Anjos tão menina mas já
despontando e, quem sabe se o triste desenlace tenha advindo de ciúme, e que o
lenço atado com dois nós em volta do pescoço tenha mesmo pertencido a Josefa
Maria Colares uma conhecida gatuna com cadastro.
***
Talvez também tu, Maria
Ida, tanto ano passado sobre o assassinato de Maria dos Anjos, tenhas, ainda,
andado pelos brejos de Lisboa e tenhas tido pejo em confessar-nos.
Tu roubada pela amante
que passearias escondida de que te vissem no "meu bairro".
5 comentários:
Ai mulher, é tão tu :-)
Um conto denso, cheio de idas e vindas como é tua marca. E que nos conduz para um lado, enquanto a possível verdade dos fatos está, ou pode estar, em outro. A tua cabeça é, decididamente, um tornado. Acompanhar exige atenção e fôlego. E é isso que eu tanto admiro e respeito na tua escrita : essa capacidade de "desinstalar" o leitor do que é esperado, do óbvio, e mostrar sempre um ângulo alternativo. Aprendi muitas palavras, hoje.
Muitas vezes te releio para entender. Desta vez foi leitura seguida. Cheguei a pensar que seriam dois contos num só. Mas não. Como disse a Cinthia,"denso". Acrescento: extraordinário!
... e eu a pensar que a tarde estava soalheira. Afinal...
Parabéns. É sempre bom ver Maria dos Anjos recordada.
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