Era um dia tranquilo na repartição. A chefa se ausentara mais cedo e os colegas haviam saído para um treinamento externo. O trabalho de Roberta estava bem adiantado, sobrando-lhe vagar para um gostoso fazer nada naquele resto de tarde.
Ela podia se divertir nas malhas sociais, ligar para a prima gêmea de Goianésia, folhear sua revista masculina preferida, avaliar a correção das provas bimestrais dos filhos, ler novas crônicas de Martha Medeiros. No entanto, preferiu aproveitar a felicidade do silêncio para escrever uma carta de amor cujo destinatário seria o marido. Poderia haver presente mais carinhoso nos treze anos de casamento que fariam no sábado seguinte?
Reviu algumas fotos arquivadas no computador, lembrou-se de momentos ternos desfrutados a dois, do nascimento prematuro dos pequenos, das viagens e festividades em família, da lida diária em favor do equilíbrio e concluiu que: sim, ela havia feito uma boa escolha; sim, o arrependimento de outrora se dissolvera; não, aquela incontrolável vontade de zarpar não mais visitaria sua mente.
Roberta procurava mesmo uma oportunidade de ser gentil e demonstrar justa gratidão ao homem que lhe proporcionara tanta vida nos últimos anos. Uma missiva elogiosa lhe pareceu cafuné providencial para a ocasião das bodas. E não lhe custaria dinheiro algum! Na história dos dois, os recadinhos sempre foram significativos. No tempo do namoro, por diversas vezes, ela encantou José Ricardo com a eloquência do amor (eternizado em cartas vulcânicas). Levava o moço ao pé de árvore frondosa, abria o papel de carta manuscrita e lia pra ele, com voz de radialista AM noturna. As mensagens açucaradas estavam todas guardadas em baú, ricamente avaliadas como tesouro da memória.
Esta narrativa, depois de tão longo intervalo epistolar, deveria superar todas as outras em surpresa, literariedade, paixão, volúpia. Deveria ser uma confissão assim pura e direta: “Ricardo, adoro ser sua. Continue sendo meu”. Deveria representar mais que o primeiro beijo furtado, mais que o primeiro pernoite em leito nupcial, mais que as chaves do imóvel próprio, mais que a boa-nova da paternidade. Desencadearia certamente a melhor lua-de-mel.
Assim, bem inspirada e disposta, livre da curiosidade de camaradas pentelhos, pôs-se Roberta a escrever, não à mão, mas no computador, a bendita declaração para o amado — tudo muito seleto, com requintes de sabores e minúcias, elaboração de vocabulário e estilo experimental.
Relatou, por exemplo: o ódio que sentiu ao se tornar dona de casa e ter de fazer todo o trabalho doméstico, o medo de que Ricardo não a desejasse durante a gravidez e depois da quarentena, o desespero da vigília quando começou a amamentar, o desengonço crônico ao banhar bonecos tão miúdos e quebradiços. E logo depois, falou sobre a forma encantada como a realidade se manifestou e transformou seus dias: as tarefas de casa divididas entre marido e mulher, o apetite sexual bem nutrido em todos os períodos do casamento, o amparo do marido e todo o zelo dele para com os pequerruchos desde que foram planejados.
Enumerou ainda, desta vez de forma mais caprichada (pois imaginou que esta parte do texto seria a preferida do receptor), os orgasmos mais intensos que sentiu com ele, os regalos inesperados que recebeu, as maiores provações de amor, a beleza da paciência dele — quando das sucessivas crises de infecção urinária e quando da pavorosa síndrome do pânico, logo no início do casamento —, o respeito ao luto dela em mortes dolorosas e a generosidade de seu perdão, que já soubera remi-la sete vezes setecentas vezes.
Aproveitou para pedir ao esposo que continuasse rico em clemência, apesar das graves desvirtudes que ele mesmo já detectara nela — tais quais odiar de morte a chefa e mesmo assim ter de alisá-la para não perder o emprego, furtar lanche na copa da empresa quando a fome apertava pra valer, ser mesquinha com a sogra e agir de forma egoísta com os filhos.
Roberta chorou enquanto mencionava na correspondência a atitude elevada do marido, que a perdoou por ter cometido dois casos de quase adultério. “Foi a sua misericórdia que os fez tão pueris, fortuitos e tão sem solvência e que garantiu a estabilidade e harmonia da nossa família, meu José”.
A mulher revisou a carta com delicadeza, fazendo pequenas correções na pontuação e estrutura das frases. Sentiu-se feliz com o resultado. Levava jeito pra pena! Estava tudo ali — explícito, inteligível, sensível, poético, pulsante... Roberta inteira, realizada como mulher de Ricardo e como autora de verdadeira joia literária. Assinou o texto com prazer.
Como faltavam apenas dez minutos para as dezoito horas, escolheu uma fonte de tipo caligráfico, formatou e imprimiu as páginas de confissão em três folhas de formato A4 e foi ao banheiro aprontar-se para ir embora.
Roberta levava bons quilômetros do escritório até a residência. Por conta de engarrafamento incomum, naquele dia chegou ainda mais tarde. Mesmo assim, atendeu os filhos, o marido, o lar. Ao adormecer, sentiu-se feliz, útil, estável, em paz com seu homem e com a vida.
“Anta! Você esqueceu a carta na impressora!” — Roberta entra em pânico no meio da madrugada. Com aquele vacilo imperdoável, sua intimidade seria certamente violada na manhã seguinte pelos colegas de departamento.
Passa pesadamente insone as cinzas da alvorada. Tudo nela dói, e a cabeça gira a mil, criativa, pressentindo desonras e catástrofes das mais desgraçadas:
A secretária Tatiana, sempre a primeira a chegar na sala, encontra a carta na impressora, negrita os trechos mais picantes, tira várias cópias e, por descuido, deixa um documento na mesa de cada colega da repartição.
A magrela Leonor se deleita com a correspondência. Vibra com as palavras obscenas, imagina as posições mais retorcidas. Promete inspirar-se nos episódios pornoeróticos mais ardentes contidos na carta para saciar seu esposo gorducho. De uma hora pra outra, Roberta vira sex symbol da firma.
Ao ler a missiva, Josafá, ex-futuro-affair de Roberta, sente ciúme patológico do amor que ela sente pelo marido e sofre treco fulminante diante de todos os companheiros da empresa. Dentro de poucos minutos, sem defesa, o advogado agoniza de despeito, com morte transitada em julgado.
A sempre íntegra e imaculada chefa, Larissa, escandaliza-se com o atrevimento da subalterna. “Onde já se viu alguém se expor dessa maneira no ambiente de trabalho? Por que não deixou pra imprimir essa sem-vergonhice em casa? Recebendo salário pra escrever cartinha pornográfica? Só falta fazer programa aqui também”. Doutora Larissa convoca assembleia extraordinária com todos os empregados, recrimina o grave erro de conduta de Roberta e a apedreja na internet. Demitida da empresa, nossa romântica heroína vai presa, perde os amigos e a guarda dos filhos. Até mesmo José Ricardo a abandona — pelo vexame e embaraço diante da opinião pública.
De roxas olheiras, descabelada e ofegante, Roberta ruma à empresa na quinta-feira antes do raiar do dia. Nem se despede dos filhos. Nunca chegara tão cedo na firma, nunca desejara tanto adentrar sua sala, nunca quisera tanto ser a primeira. Passa muito rápido pela catraca. Bate o ponto desolada, almejando uma graça. Seus batimentos registram um misto de horror e esperança.
A sala está vazia. “Maravilha”. Mas a bolsa de Tatiana já se encontra na baia dela. “Que caxias!” — resmunga.
Discretamente, Roberta vasculha os papéis sobre a bandeja da impressora e todas as folhas ali por perto, na mesinha. Documentos, cópias de contas bancárias, papéis de toda ordem. Nada de carta de amor.
— Bom dia, Roberta.
— Bom dia, Táti.
O sorriso de Tatiana parece zombar de Roberta.
Ela espera um pouquinho, pra não dar bandeira, e pergunta à secretária se, por acaso, ela não viu uns papéis sobre a impressora.
— Não. Acabei de chegar.
— Tinha alguém aqui antes?
— Acho que não.
Roberta passa o dia com o peito em nó — sensação de que, daqui prali, alguém irá desmascará-la.
Mas, misteriosamente, nada de carta?
Na sexta, também nada.
Já está mais tranquila. Nem se aflige mais. Depois da angústia extrema, nada melhor que o alívio. “Bobagem minha. A impressão deve ter falhado. Ou então me enganei. Nem mandei copiar”.
No final do expediente de sexta, decide imprimir a carta de novo. “Desta vez, fico na boca da impressora e guardo os papéis na bolsa na mesma hora”.
Mas, para sua surpresa, o arquivo está completamente vazio. “Quem apagou o texto? Que absurdo! Isso é violação de intimidade. E se fui eu mesma que deletei tudo sem querer? Devo ter endoidado”.
Roberta se entristece. Está confusa. Pensa em escrever outra correspondência, mas não há clima nem inspiração. Precisa ir embora. O aniversário de casamento é amanhã.
Escreve um bilhete “Amo você”, engole o choro e presenteia o marido com uma inovadora caixa de lenços Presidente.
Maria Amélia Elói
domingo, 26 de julho de 2015
Epístola
por Maria Amélia Elói
4 Comentários
4 comentários:
Maria Amélia, sempre é um prazer ler seus retratos da vida, tirados através de lentes muitíssimo delicadas. Confesso que experimentei como um balde de água fria ver tão confessional correspondência substituída por um bilhetinho ordinário. Todavia, creio, há coisas que precisamos realmente escrever, mas que não devem ser lidas por terceiros. Que prevaleça o mistérios que nos mantém fabulosos. Texto cativante. Abraços!
Obrigada pela leitura, Emerson!
Amélia, vc tem o dom da pena!! Que bom que o computador salvou, o site publicou, e nada foi apagado dessa crônica, para q pudéssemos saborear cada parágrafo! Amei, sofri e simplifiquei junto com Roberta!
Beijos,
Marusia
Que alegria tê-la como leitora!
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