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sexta-feira, 26 de junho de 2015

Herança

Era bonita a comoção do pai antes da última frase do diálogo: “O importante é você ser feliz”. Ele pronunciava “filiz” lenta e enfaticamente — o que deixava o momento mais carinhoso e intenso.
Maria presenciou aquilo várias vezes. O homem sempre rijo, respeitado e poderoso desabava em sentimento ao lidar com as delicadezas existenciais da filha. Ao orador nato, prolixo e convincente, por vezes faltaram palavras diante dos pleitos da moça.

Quando ela contou sobre o primeiro amor, a situação foi decerto tensa. Seu Oliveira não esperava a notícia. Foi surpreendido pelo desejo de namorar de sua menina. A fala saiu meio atropelada, discurso improvisado de susto, rigor, tristeza, preocupação: “Não pense que vai ficar saindo com esse garoto toda noite. Moça de família não chega tarde nem fica na casa de namorado. Não se iluda muito. Você é romântica, inocente; ele poderá magoá-la. Não seja tão transparente nem se deixe levar por conversinha mole”. Ao final do sermão, ele soltou o que a menina, aos 15 para 16 anos, queria ouvir: “Vocês podem namorar, mas sem excessos. O importante é você ser filiz”.

O pai tinha razão nas admoestações prévias. O namorico durou quatro meses, e a paixão dela pelo frangote continuou por mais dois ou três invernos: ela implorando para reatarem, recusando relacionamento com outros rapazes, negando beijo, escrevendo cartinhas lacrimosas e se humilhando, como se o primeiro rabicho merecesse crédito ou padecimento.

Quando, aos 21 anos, Maria se formou na faculdade e foi comunicar ao pai que logo ficaria noiva do namorado gente boa — porque, afinal, ambos já tinham concluído o curso superior e estavam empregados —, Seu Oliveira demonstrou preocupação: “Você vai casar só por isso? Só por terem terminado o ensino superior e por trabalharem fora? O motivo é fraco. Não justifica. Você só deve casar pra ser filiz”.

Ela entendeu o recado. Tão simples! Faltava amor. Pelo menos para assumir um matrimônio. Ela não precisava se casar ainda. Não amava o suficiente. O namoro já durava três anos, era legalzinho, mas aquele bom moço não cabia no plano da felicidade... Necessário esperar a paixão ardida que transbordaria e exigiria presença, cumplicidade, drama, comédia, suspense, entrega, desassossego, desejo de eternidade. Maria deveria se espelhar na história de seus pais, lealmente unidos há décadas, convictos da escolha acertada.

Antes de adentrar a igreja com a filha, Seu Oliveira teve a chance de repetir que aquele seria um dos passos mais importantes da vida dela, senão o mais decisivo: “Ainda dá tempo de você recuar, se quiser. Você só deve ir adiante se o principal objetivo for a legitimação da sua felicidade”. Quando Maria reafirmou que aquele era mesmo seu desejo, que o noivo no altar era quem ela desejava para a vida toda, o pai abriu um sorrisão emocionado, deu o braço para a filha e deixou o cerimonialista abrir a porta do santuário.

Enquanto viveu, acompanhou grande parte dos arbítrios da filha — nos estudos, carreira e vida pessoal. Seu Oliveira tentou agir de forma equilibrada — ora com tom professoral, ora brincalhão, às vezes autoritário, às vezes condescendente, ora superprotegendo, ora incentivando a criatividade e a independência dela no enfrentamento à vida. Claro que houve excessos e negligências; afinal, a educação dos filhos é um constante avançar rumo à tradição e um volver à vanguarda, num processo sempre desregrado e sem mensuração de eficácia. E quem canta a felicidade não consegue ser comedido no amor!

Talvez mesmo por isso, a grande máxima de Seu Oliveira não há de perder jamais a magnitude e ternura. Vai resistir pra além da história de Maria, de seus filhos e netos. A voz embargada de saudade vai pra sempre ressoar aquele lento e enfático “O importante é você ser filiz”.

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