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sábado, 6 de junho de 2015

EXPIAÇÃO




          Tínhamos uma vontade inexplicável de ter filhos desde cedo. Acredito que não racionalizávamos aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no dito schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados desde cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.
          Alice dizia que queria ter filhos e eu imaginava na mesma hora o rosto das crianças, seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do mundo. O mundo era uma coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta. Mas e depois? Sempre me senti frustrado com essa pergunta. É que no mais das vezes não há nada depois. Passei anos trabalhando ininterruptamente, fazendo contatos, explorando o network, bancando o boa pinta, almoçando na casa de campo de grande sócios da empresa, passando feriadões nas mansões em ilhas deles, fingindo ter algo em comum com suas vidas rasas, interpretando um papel. Tudo isso para ter o que tive. E depois?
        Depois veio aquela ideia de Alice de termos um filho. Eva também tinha. Sinto muita pena de Eva até hoje. É que ela me veio com a ideia de filhos antes de saber que era incapaz disso. Estéril. Onde entra Schopenhauer aí? Afinal, uma mulher estéril não está na natureza? Não obedece suas leis? Não modifica o que pode com a sua existência? Eva não ouvia o crescei e multiplicai, seu corpo não atendia a nenhum intento divino e, não obstante, Eva era uma deusa. Não sei até que ponto posso dizer isso, mas explorei o corpo de Eva como uma metrópole a suas colônias, até que ela ficou seca. No final havia restado apenas uma mulher incapaz de ter filhos, e aquilo não era agradável.
      Havia conhecido Eva num dos finais de semana na casa de um dos investidores estrangeiros da empresa. Era uma reunião de negócios que seria estendida a um curto convívio no qual deveríamos mostrar nossas habilidades no inglês e nossa imensa cultura de terceiro mundo – era um daqueles buldogues britânicos que nunca se impressionam com nada, mas que gostam de fazer safári e interpretar determinados papeis, um dos quais de bom anfitrião, outro de gentleman – o que para ele soava exótico num mundo de ratos (que era como imaginava o nosso).
Eva estava lá ao meu lado, como uma assistente, quando o velho buldogue desceu de seu pedestal personalíssimo e soltou numa das baforadas de seu charuto que “Eva” era um nome duplamente incômodo para ele, por sugerir de um lado a gênese evolucionista do ancestral em comum a todos os homens nos prados da África e de outro por ter sido o nome da mulher de Adolf Hitler. Olhei para Eva de relance e vi que ela não estava disposta a “compreender” a piada infame, seja pelo preconceito contra os negros, Eva era uma negra magnífica, seja pela referência à retardada Braun, que teria morrido velha e anônima em seu chalé de Bariloche.
E eu já estava de olho em Eva (teria sido a natureza me impelindo a procriar com ela? Um corpo tão lindo, uma inteligência magnânima... A natureza pode ter errado com Eva), daí tinha sido minha hora de interpretar um papel: o de homem providente. Disse ao gringo que, em que pesasse sua respeitada inteligência, aquele comentário havia sido dito fora de ocasião – não queria soar muito recriminatório, mas o fato é que o meu excesso de educação deu a Eva a impressão de que eu era uma espécie de bundão que não queria desagradar o ricaço, ao mesmo tempo que queria ganhar a donzela, num toma-lá-dá-cá bonachão e dançante típico dos ingênuos idiotas do american way of life. Só depois parei e pensei: “fora de ocasião” significaria que depois, a sós, o gringo poderia ralar o pau em Eva e tudo estaria certo. Amarguei.
Corri tanto atrás de Eva depois daquilo para me desculpar que sem saber estava dando a ela a oportunidade de interpretar um dos papeis que preferia: moça má. No fim, quando já estava exausto, Eva simplesmente me tomou (ainda no escritório) – num ato que demonstrava a superioridade de sua vontade sobre a minha –, e fodemos na sala de um dos diretores no fim do expediente. Pronto, estava de pneus caídos por Eva.
Aquilo durou um século, até que ela veio me dizer numa tarde que não poderia ter filhos e eu pus na minha mente que precisava arranjar outra mulher que me desse filhos, que substituísse Eva. Era como se Eva para mim fosse apenas a minha objetivação de Eva. Veja, eu era um indivíduo latente, Eva também o era para ela mesma, tenho certeza, mas para mim Eva amaldiçoava meu mundo porque o delimitava diante do poder de sua própria querência de mundo. E Eva me era um objeto substituível que eu preparava para descartar, embora jurasse loucamente tê-la amado fielmente. Eu amara Eva ou a mim mesmo por meio dela?
 E assim dei vazão ao meu plano lupino. No início seria apenas uma mulher que me servisse com sua gravidez, uma barriga de aluguel – que soubesse ou que não soubesse disso –, mas aí veio Alice e Alice me dominou. Não sei ao certo, sempre fui muito solícito à dominação do gênio feminino. A mulher é o verdadeiro diabo, verdadeiro e único. E eu ficava naquela de querer dominar o mundo à minha volta, mas de me acomodar com facilidade àquele mundo ideal onde as mulheres vivem e pelo qual lutam até a morte com argumentos morais.
Através dos reiterados cuidados de Alice esqueci o amor que eu jurava ter por Eva e continuei com ambas por muito tempo, até que um dia Eva se cansou de mim e usou seu animus dominandi para me dar o pé na bunda que há muito eu queria dar nela, sem ter coragem. Senti-me pela primeira vez na minha vida pessoal o dominante na ação, como se tivesse montado uma estratégia exitosa. Um Übermensch?! Tive um pouco de paz na redução de minha vida pessoal à de Alice. Um perspectivismo muito amplo no amor dá náuseas. E enquanto Alice dizia que queria ter filhos eu imaginava na mesma hora o rosto das crianças, seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do mundo. O mundo era uma coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta. Havia um prazer indescritível naquela ilusão de que o mundo era nosso. Casamos.
Havia eu casado com Alice pelo simples fato de querer um filho? Havia a natureza me controlado a ponto de me direcionar à simples perpetuação da espécie? Assim, nua e crua? Sem os apetrechos floreados do sentimento humano? Havia em tudo aquilo um perder-se muito acentuado. Enquanto numa perspectiva eu fazia todas elas de marionete, em outra eu e todas elas éramos as marionetes. Aquela visão de Schopenhauer era-me como o suicídio de uma moral que me era doce – a moral do homem que domina. Uma vez um amigo me disse que Nietzsche já havia desconstruído a tese pessimista de Schopenhauer. Por que? Só porque Nietzsche veio depois? Ora, e o que é a história, mon cher ami? Perguntei sem ter resposta – nunca concordei com a disposição sequencial dos livros de história. Nunca vi uma linha reta no processo histórico e do pensamento humano, que para mim eram cheios de loops. Eu gostava de Friedrich, mas queria saber até onde estava certo o velho Arthur. E a vontade de sabença é uma daquelas coisas que nos levam a lugar nenhum e mesmo assim a gente anseia. A gente sempre anseia o inútil. Somos seres que se lambuzam na inutilidade. Que é viver?
O fato é que menos de um ano de casado com Alice já tínhamos o pequeno João. Ela dizia que o nome era em homenagem a um dos discípulos do seu deus, que mais gostava, eu só aceitei porque João era o primeiro nome de Bach. E João cresceu ouvindo a mãe ler os evangelhos e o pai ouvir Bach. Acho que ele prefere a mim, há no cristianismo uma fraqueza jungida à sua espinha dorsal. João já é um menino grande que gosta de coisas intensas. Uma vez o vi jogar um brinquedo pela janela da área de serviço, perguntei porque fazia aquilo ao que me disse que se o boneco resistisse à queda, se tornaria o preferido. Aquele menino já era vontade de potência! Eu estava feliz, o João se parecia muito comigo. Era para aquilo que os filhos serviam? Para nos ser como réplicas? Covers?
Vi o tempo passar – insistimos em dar esse atributo tosco a uma coisa inexistente. E como naquele versículo derradeiro do capítulo sei lá qual da epístola de Lucas: vi a criança crescer e se desenvolver em sabedoria, estatura e graça na presença de seus pais. Uma vez pensei que o melhor papel que já exerci em minha vida tinha sido o papel de pai, daí percebi que estava ficando velho.
João tinha cerca de dez anos quando eu fui diagnosticado com câncer. Acontece. Estava mal pra caralho e de vez em quando me lembrava da pena que sentia por Eva. Soube por um amigo do escritório que Eva estava em outras paradas, que estava linda e ainda mais negra como a rainha de Sabá numa das ilhas da Itália. Eva sempre fora um diabo e diabos merecem a vitalidade eterna da beleza. Eu estava sobre a cama branca e fria de um hospital, rodeado por gente escrota que se gabava por ter minha vida em suas mãos. Alice e o pequeno João vinham sempre. Tínhamos conseguido o permissivo da entrada dele porque eu ficava num apartamento, se estivesse num hospital público só teria direito de ver meu filho no dia de minha morte. O João brincava pelo chão, enquanto sua mãe ficava próxima a mim e brincava de cuidar de mim, como desde cedo brincava de cuidar de suas bonequinhas quando essas machucavam o pezinho. Dizia que tudo passaria com beijinhos, as feridinhas dentro do meu corpo iriam embora para sempre. Eu sentia um conforto naquelas palavras infantis de Alice. No fundo nós homens somos crianças que tiveram de crescer. Apenas isso. Não há nada de complicado em entender-nos. Olhava o pequeno João, que brincava de avião no quarto do hospital. Ele brincava de avião resoluto inventando guerras e mortes em pleno voo, sua expressão facial era a mesma do Hércules estampado em sua camisa branca, havia heroísmo em toda aquela farsa. Alice e eu nos entreolhávamos cúmplices – é que há muito já havíamos saído daquele mundo mágico no qual a entrada de João era a nossa expiação.
Sempre tivemos uma vontade inexplicável de ter filhos, desde cedo. Acredito que não racionalizávamos aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no dito schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados desde cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.
Mas enquanto eu olhava o pequeno João arrancar pequenas lágrimas de contento dos olhos de sua mãe com brincadeiras de heróis, com fantasias de aviões imensos dentro de um quarto de hospital, enquanto eu definhava de um câncer que me mataria em dias, entrevi um pouco a chave do mistério. As crianças eram pequenas coisas que colocávamos no mundo para nos substituir. Eu havia desbancado a tese do velho Arthur? Não sei! Mas o fato é que aquilo era-me o epílogo de uma vida toda pensando. Não se tratava de uma vontade da natureza de perpetuação da espécie, ou mesmo de uma vontade nossa de amor. Talvez se tratasse da remissão que precisávamos cumprir por termos abandonado a verdadeira idade da vida que era aquela do João. Por termos nos expulsado do Éden? Tratava-se de uma nossa tal esquizofrenia, a loucura de criarmos com aquela vontade de retorno, os seres que nos vão carpir.
E dias depois estava o pequeno João brincando com uma pequena borboleta multicor sobre a lápide do meu túmulo.


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