Tínhamos
uma vontade inexplicável de ter filhos desde cedo. Acredito que não
racionalizávamos aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no
dito schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados
desde cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de
filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do
mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de
perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.
Alice
dizia que queria ter filhos e eu imaginava na mesma hora o rosto das crianças,
seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do mundo. O mundo era uma
coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta. Mas e depois? Sempre me senti
frustrado com essa pergunta. É que no mais das vezes não há nada depois. Passei
anos trabalhando ininterruptamente, fazendo contatos, explorando o network, bancando o boa pinta, almoçando
na casa de campo de grande sócios da empresa, passando feriadões nas mansões em
ilhas deles, fingindo ter algo em comum com suas vidas rasas, interpretando um
papel. Tudo isso para ter o que tive. E depois?
Depois
veio aquela ideia de Alice de termos um filho. Eva também tinha. Sinto muita
pena de Eva até hoje. É que ela me veio com a ideia de filhos antes de saber
que era incapaz disso. Estéril. Onde entra Schopenhauer aí? Afinal, uma mulher
estéril não está na natureza? Não obedece suas leis? Não modifica o que pode
com a sua existência? Eva não ouvia o crescei
e multiplicai, seu corpo não atendia a nenhum intento divino e, não
obstante, Eva era uma deusa. Não sei até que ponto posso dizer isso, mas
explorei o corpo de Eva como uma metrópole a suas colônias, até que ela ficou
seca. No final havia restado apenas uma mulher incapaz de ter filhos, e aquilo
não era agradável.
Havia
conhecido Eva num dos finais de semana na casa de um dos investidores
estrangeiros da empresa. Era uma reunião de negócios que seria estendida a um
curto convívio no qual deveríamos mostrar nossas habilidades no inglês e nossa
imensa cultura de terceiro mundo – era um daqueles buldogues britânicos que
nunca se impressionam com nada, mas que gostam de fazer safári e interpretar
determinados papeis, um dos quais de bom anfitrião, outro de gentleman – o que para ele soava exótico
num mundo de ratos (que era como imaginava o nosso).
Eva estava lá ao meu lado, como uma
assistente, quando o velho buldogue desceu de seu pedestal personalíssimo e
soltou numa das baforadas de seu charuto que “Eva” era um nome duplamente
incômodo para ele, por sugerir de um lado a gênese evolucionista do ancestral
em comum a todos os homens nos prados da África e de outro por ter sido o nome
da mulher de Adolf Hitler. Olhei para Eva de relance e vi que ela não estava
disposta a “compreender” a piada infame, seja pelo preconceito contra os
negros, Eva era uma negra magnífica, seja pela referência à retardada Braun,
que teria morrido velha e anônima em seu chalé de Bariloche.
E eu já estava de olho em Eva (teria
sido a natureza me impelindo a procriar com ela? Um corpo tão lindo, uma
inteligência magnânima... A natureza pode ter errado com Eva), daí tinha sido
minha hora de interpretar um papel: o de homem providente. Disse ao gringo que,
em que pesasse sua respeitada inteligência, aquele comentário havia sido dito
fora de ocasião – não queria soar muito recriminatório, mas o fato é que o meu
excesso de educação deu a Eva a impressão de que eu era uma espécie de bundão
que não queria desagradar o ricaço, ao mesmo tempo que queria ganhar a donzela,
num toma-lá-dá-cá bonachão e dançante típico dos ingênuos idiotas do american way of life. Só depois parei e
pensei: “fora de ocasião” significaria que depois, a sós, o gringo poderia
ralar o pau em Eva e tudo estaria certo. Amarguei.
Corri tanto atrás de Eva depois
daquilo para me desculpar que sem saber estava dando a ela a oportunidade de interpretar
um dos papeis que preferia: moça má. No fim, quando já estava exausto, Eva
simplesmente me tomou (ainda no escritório) – num ato que demonstrava a
superioridade de sua vontade sobre a minha –, e fodemos na sala de um dos
diretores no fim do expediente. Pronto, estava de pneus caídos por Eva.
Aquilo durou um século, até que ela
veio me dizer numa tarde que não poderia ter filhos e eu pus na minha mente que
precisava arranjar outra mulher que me desse filhos, que substituísse Eva. Era
como se Eva para mim fosse apenas a minha objetivação de Eva. Veja, eu era um
indivíduo latente, Eva também o era para ela mesma, tenho certeza, mas para mim
Eva amaldiçoava meu mundo porque o delimitava diante do poder de sua própria
querência de mundo. E Eva me era um objeto substituível que eu preparava para
descartar, embora jurasse loucamente tê-la amado fielmente. Eu amara Eva ou a
mim mesmo por meio dela?
E assim dei vazão ao meu plano lupino. No
início seria apenas uma mulher que me servisse com sua gravidez, uma barriga de
aluguel – que soubesse ou que não soubesse disso –, mas aí veio Alice e Alice
me dominou. Não sei ao certo, sempre fui muito solícito à dominação do gênio
feminino. A mulher é o verdadeiro diabo, verdadeiro e único. E eu ficava
naquela de querer dominar o mundo à minha volta, mas de me acomodar com
facilidade àquele mundo ideal onde as mulheres vivem e pelo qual lutam até a
morte com argumentos morais.
Através dos reiterados cuidados de
Alice esqueci o amor que eu jurava ter por Eva e continuei com ambas por muito
tempo, até que um dia Eva se cansou de mim e usou seu animus dominandi para me dar o pé na bunda que há muito eu queria
dar nela, sem ter coragem. Senti-me pela primeira vez na minha vida pessoal o dominante
na ação, como se tivesse montado uma estratégia exitosa. Um Übermensch?! Tive um pouco de paz na
redução de minha vida pessoal à de Alice. Um perspectivismo muito amplo no amor
dá náuseas. E enquanto Alice dizia que queria ter filhos eu imaginava na mesma
hora o rosto das crianças, seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do
mundo. O mundo era uma coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta.
Havia um prazer indescritível naquela ilusão de que o mundo era nosso. Casamos.
Havia eu casado com Alice pelo simples
fato de querer um filho? Havia a natureza me controlado a ponto de me
direcionar à simples perpetuação da espécie? Assim, nua e crua? Sem os
apetrechos floreados do sentimento humano? Havia em tudo aquilo um perder-se
muito acentuado. Enquanto numa perspectiva eu fazia todas elas de marionete, em
outra eu e todas elas éramos as marionetes. Aquela visão de Schopenhauer era-me
como o suicídio de uma moral que me era doce – a moral do homem que domina. Uma
vez um amigo me disse que Nietzsche já havia desconstruído a tese pessimista de
Schopenhauer. Por que? Só porque Nietzsche veio depois? Ora, e o que é a
história, mon cher ami? Perguntei sem
ter resposta – nunca concordei com a disposição sequencial dos livros de
história. Nunca vi uma linha reta no processo histórico e do pensamento humano,
que para mim eram cheios de loops. Eu
gostava de Friedrich, mas queria saber até onde estava certo o velho Arthur. E
a vontade de sabença é uma daquelas coisas que nos levam a lugar nenhum e mesmo
assim a gente anseia. A gente sempre anseia o inútil. Somos seres que se
lambuzam na inutilidade. Que é viver?
O fato é que menos de um ano de casado
com Alice já tínhamos o pequeno João. Ela dizia que o nome era em homenagem a
um dos discípulos do seu deus, que mais gostava, eu só aceitei porque João era
o primeiro nome de Bach. E João cresceu ouvindo a mãe ler os evangelhos e o pai
ouvir Bach. Acho que ele prefere a mim, há no cristianismo uma fraqueza jungida
à sua espinha dorsal. João já é um menino grande que gosta de coisas intensas.
Uma vez o vi jogar um brinquedo pela janela da área de serviço, perguntei
porque fazia aquilo ao que me disse que se o boneco resistisse à queda, se
tornaria o preferido. Aquele menino já era vontade de potência! Eu estava
feliz, o João se parecia muito comigo. Era para aquilo que os filhos serviam?
Para nos ser como réplicas? Covers?
Vi o tempo passar – insistimos em dar
esse atributo tosco a uma coisa inexistente. E como naquele versículo
derradeiro do capítulo sei lá qual da epístola de Lucas: vi a criança crescer e
se desenvolver em sabedoria, estatura e graça na presença de seus pais. Uma vez
pensei que o melhor papel que já exerci em minha vida tinha sido o papel de
pai, daí percebi que estava ficando velho.
João tinha cerca de dez anos quando eu
fui diagnosticado com câncer. Acontece. Estava mal pra caralho e de vez em
quando me lembrava da pena que sentia por Eva. Soube por um amigo do escritório
que Eva estava em outras paradas, que estava linda e ainda mais negra como a
rainha de Sabá numa das ilhas da Itália. Eva sempre fora um diabo e diabos
merecem a vitalidade eterna da beleza. Eu estava sobre a cama branca e fria de
um hospital, rodeado por gente escrota que se gabava por ter minha vida em suas
mãos. Alice e o pequeno João vinham sempre. Tínhamos conseguido o permissivo da
entrada dele porque eu ficava num apartamento, se estivesse num hospital
público só teria direito de ver meu filho no dia de minha morte. O João
brincava pelo chão, enquanto sua mãe ficava próxima a mim e brincava de cuidar
de mim, como desde cedo brincava de cuidar de suas bonequinhas quando essas
machucavam o pezinho. Dizia que tudo passaria com beijinhos, as feridinhas
dentro do meu corpo iriam embora para sempre. Eu sentia um conforto naquelas
palavras infantis de Alice. No fundo nós homens somos crianças que tiveram de
crescer. Apenas isso. Não há nada de complicado em entender-nos. Olhava o
pequeno João, que brincava de avião no quarto do hospital. Ele brincava de
avião resoluto inventando guerras e mortes em pleno voo, sua expressão facial
era a mesma do Hércules estampado em sua camisa branca, havia heroísmo em toda
aquela farsa. Alice e eu nos entreolhávamos cúmplices – é que há muito já
havíamos saído daquele mundo mágico no qual a entrada de João era a nossa
expiação.
Sempre tivemos uma vontade
inexplicável de ter filhos, desde cedo. Acredito que não racionalizávamos
aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no dito
schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados desde
cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de
filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do
mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de
perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.
Mas enquanto eu olhava o pequeno João
arrancar pequenas lágrimas de contento dos olhos de sua mãe com brincadeiras de
heróis, com fantasias de aviões imensos dentro de um
quarto de hospital, enquanto eu definhava de um câncer que me mataria em dias,
entrevi um pouco a chave do mistério. As crianças eram pequenas coisas que colocávamos
no mundo para nos substituir. Eu havia desbancado a tese do velho Arthur? Não
sei! Mas o fato é que aquilo era-me o epílogo de uma vida toda pensando. Não se
tratava de uma vontade da natureza de perpetuação da espécie, ou mesmo de uma
vontade nossa de amor. Talvez se tratasse da remissão que precisávamos cumprir
por termos abandonado a verdadeira idade da vida que era aquela do João. Por
termos nos expulsado do Éden? Tratava-se de uma nossa tal esquizofrenia, a
loucura de criarmos com aquela vontade de retorno, os seres que nos vão carpir.
E dias depois estava o pequeno João
brincando com uma pequena borboleta multicor sobre a lápide do meu túmulo.
0 comentários:
Postar um comentário