«A
febre, que desagradável! Os suores. O mais penoso é a tosse.»
― Não
serão febres de África, doutor?
«”Santa
mama preta da minha ama sudanesa”! Tuberculose! Ah, o fulgurante
Manifesto!
Paris. “A furiosa vassoura da loucura arrancou-nos de nós mesmos e
enxotou-nos pelas ruas”. Dórdio, Amadeu, Manuel Jardim. O Diogo.
Como o pobre me conheceu... À minha cintilante genialidade
futurista. O porteiro do museu Carnavalet a enxotar-me, e eu aos
urros, aos brados, em língua acabada de inventar. Só porque me
sentei na cadeira de Voltaire. Sim, cruzei a perna e acendi um
cigarro. Tinha de experimentar se um poucochinho do génio do antigo
proprietário passava para mim, como dizem os hiperestésicos. Um tal
Carrington. Como me fui lembrar ainda do nome? Já foi há uns sete
anos. 1911? Faz sentido. Tempos gloriosos. “Um orgulho imenso
intumescia os nossos peitos, pois sentíamo-nos os únicos, naquela
hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas
avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam
furtivas dos seus acampamentos celestes.” E, para quê? A perfeita
cópia da Olímpia foi considerada uma afronta revolucionária, por
ser de Manet.»
― Augusto,
meu irmão, não deixes os meus quadros ficarem por aí, à mercê de
qualquer professor, cicerone ou antiquário. Destrói-os todos.
Promete!
«Claro
que preferiam Ingres. Ou, mesmo, Cabanel. Com a Academia nas mãos do
Veloso Salgado… Amargos de boca. Daquela vez que o retratei
fielmente, integrado num Inferno,
onde ele era o diabo-mor, rodeado das almas penadas dos alunos. Ah,
ah! Antes de ir para Paris. Sansão e
Dalila: a prova de concurso à pensão
Valmor. Concedida, só em 1910. O ideal a acontecer. “Finalmente a
mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a
assistir ao nascimento do Centauro”. Flanar em Paris ― dominar o
mundo. Depois, a República e o embaixador. Cortar-me a pensão...
Como se eu fosse monárquico. Claro que o tinha afrontado! “Saiamos
da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como frutos
apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!”
Lisboa, de novo. Há, apenas, quatro anos. A minha espantosa postura.
As roupas pretas, o cabelo longo. Lançar as pernas para a frente, em
desafio à pequenez lisboeta. Lançar o Manifesto
aqui e ver “voar os primeiros Anjos!” O Congresso Futurista.
Minha saudosa Cervejaria Jansen! As sessões futuristas do Teatro
República. O Almada ― que formidável apresentação! Os meus
desenhos na Orpheu. E os títulos! Síntese
geometral de uma cabeça x
infinito plástico de ambiente x
transcendentalismo físico. Chamam-me
irreverente e delirante. Uns acham-me Hamlet; outros, espantalho.
Lisboa é demasiado pequena. Daquela vez que quis arrendar os
Jerónimos para pintar uma tela enorme, eh! Gosto de a afrontar, de
provocar polémicas e falatórios. Sou o “artista que o génio da
época produziu.” A Portugal
Futurista, no ano passado, poderia ter
sido a revista que abalaria os alicerces bolorentos do país. Mas não
passou do primeiro número. Nem consegui publicar o Manifesto.»
― Tragam-me
os meus escritos. Quero fazer um post-scriptum.
«Um
gesto, mais um gesto, o último. Que seja único e sublime. Isso!
Dois traços
a abarcar cada página de canto a canto. E, a finalizar, no
frontispício: Errata.
E uma assinatura bem explícita:
Santa-Rita Pintor, que é o que
sempre fui. A minha obra maior ― a minha vida apontada ao futuro ―
não cabe nos museus, nem nas bibliotecas.»
― Companheiros,
foi uma gloriosa vernissage!
Joaquim
Bispo
*
* *
(No
centenário da publicação da revista Orpheu)
Imagem:
Santa-Rita
Pintor,
Estojo
scientífico de uma cabeça + aparelho ocular + sobreposição
dynamica visual + reflexos de ambiente x luz (SENSIBILIDADE
MECHANICA),
colagem, 1914.
Publicada
no nº2 da revista Orpheu, Abril–Maio–Junho,
1915.
*
* *
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