EM PARÁBOLA
Voar, como o vento, engolindo distâncias, esvanescendo-se em neblina,
liquefazendo-se no vazio. Voar, como num sonho. Descortinar mundos além do
olhar rasteiro, de cobra esfolando o ventre no solo pedregoso. (Deserto, este.)
Voar sonhando-se gigante, um ser-por-sobre. Não-mais-nunca o pequeno Zeca:
homem-menino-sempre. Homenino. Ah, não!
Parcial,
o voo. Um tiro de canhão a torná-lo projétil. Projeto limitado de liberdade. O
estampido seco, o soco nos pés pequeninos, o corpo diminuto a cortar o espaço.
Como adaga, a água. Em
parábola. A pólvora. O cheiro de. O capacete ricocheteia no
alvo. O saco-de-batata frouxo despenca nas malhas.
A plateia vibra.
Liberdade frágil. Fogo-fátuo. O voo,
assim, forçado. Correntes invisíveis. Homenino de alma presa ao limite do
corpo. Tão-sem. Ele, escravizado ao mister. Desde sempre. Sem direito de. Sem
ninguém por.
O corpo anseia outro corpo da alma que a alma beijou.
Lis, a flor de. Bailarina infeliz. Ilha de desejos em mar de tormenta. Do
dono, filha. Armadilha.
(Ela, presa aos laços do sangue que pelas veias. Escorre pelas pernas. Pelo
sexo, para dentro. Entropia carnal. Amiúde, a contragosto.)
Olhares fugazes, roçares furtivos. Um beijo, se... O despertar rompe. O
real é pedra no sonhar.
Empreender fuga. Reinventar a vida.
Um mundo-em-que-ambos-em-si. Homenino-bala, moçamenina-bailarina.
Um aéreo plano. Asas de alumínio
ocultas sob. Abertas, projetam o voo (im)possível.
O espetáculo. Ela sob as estrelas, perto da ponte. Calada, ao frio. Ele se
prepara. Mais pólvora, nova mira. O silêncio esmaga. Calafrio. A ânsia secreta
tempestades no estômago. Sim e não, uma questão de. Dúvida atroz. Por um fio.
O estampido, enfim. Homenino-bala rasga a prisão da lona. Corisco risca o
céu pálido de lua à míngua. Em parábola.
Asas, asinhas, pelamordedeus!
Bate-bate-bate. Debate-se em vão. No vão. O saco-de-batata frouxo.
O real-pedra explode o sonho na cabeça miúda. Filete de rio rubro,
verte-se. A relva desveste o verde.
Ela corre. Tropeça, cai. Engole-se na dor, um grito oco. Abraça o corpo já-sem.
Vazio compartilhado.
Ah, não!
Lis, meu amor, plante uma flor no canhão que me cuspiu.
No circo, a plateia vaia.
O vulto disforme cresce atrás de. O corpo
que feriu a semente de si. No breu das noites sem lua. No trailer. Não às súplicas pelo não. Correntes invisíveis, nas mãos
grossas. Se um pai-eterno lhe aprouvesse. Se o Pai-nosso balbuciado. Se pai
assim o fosse. Pai.
Num ímpeto, o furor. Afasta-se do
corpo inerte, jamais seu. Enquanto o outro, resfolegante. O mesmo que a tivera.
Frente a frente já. Submissa, não mais. De uma das mãos, um brilho escapa. Com
a outra rasga a branca veste. Seios vivos: liberdade que não. O corpo pálido
sob a lua-irmã. Seu, nunca mais. O outro se acerca. Tire as mãos, porco imundo.
Um passo mais. Se mais um, te mato. Vacila. Sou eu, seu pai. Olhares faíscam. Pai?!
Meu pai? Quisera fosse. Um animal insano. E só. Pai-nosso-que-estais-no-céu. Um verme asqueroso. Pai?! Não sabe o que
significa ser. Santificado-seja-o-vosso-nome. Nem jamais do coirmão que me rasga
as entranhas. Então você... Num átimo. O abismo do corpo, outro, engole o brilho
que antes.
Agora-na-hora-da-nossa-morte. Amém.
Trôpega, até a ponte. A água recria a lua pálida. As pedras, leito macio (em
espera). O corpo translúcido. Voo suave. Em parábola.
Sob a lona, ao não tão longe, traquinices dos palhaços.
A plateia delira.
Edelson Nagues
Do livro Respeitável
público: histórias de circo e outras tragédias (com Cinthia Kriemler, Henriette Effenberger,
José Ronaldo Siqueira, Tatiana Alves e Zulmar Lopes – Editora Penalux).
3 comentários:
Tive a sensação de ver um filme em que as cenas se paralisam a cada segundo; a trajetória interrompida e continuada do tiro voo do corpo, assim, respiração com soluço. Que gratificante experiência!
Fico feliz por vc ter gostado, Marco Aurélio. Vc fez uma boa leitura do texto, enriquecendo-o. Grande abraço.
Fico feliz por vc ter gostado, Marco Aurélio. Vc fez uma boa leitura do texto, enriquecendo-o. Grande abraço.
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