Acredito que poucas pessoas saibam como
o substantivo “veado” tornou-se o desagradável adjetivo que comumente é
utilizado para que certa leva de pessoas se refira a homossexuais masculinos,
como se estes não possuíssem um nome de batismo. Bem, é sabido que gente
preconceituosa e intolerante geralmente é desprovida de discernimento e quase
não possui criatividade alguma, portanto, precisa recorrer à observação de seus
limitados, enrijecidos e metódicos cotidianos a fim de edificar analogias
capazes de realizar e projetar no mundo suas fobias sociais.
É bem provável que o termo
“veado”, quando empregado para se referir a homens gays, tenha sido utilizado
pela primeira vez em alguma floresta europeia ou norte-americana, onde ainda
hoje o animal em questão é caçado em grande escala. Fiemo-nos à hipótese de que
um determinado caçador ― valendo-se de sua generosa e infinita estupidez ―
estivesse em uma manhã qualquer de domingo a satisfazer suas sádicas taras mortuárias
por meio da caça ao veado, o animal, não pelo valor de sua carne, mas pelo
sabor do troféu. Digamos ainda que, durante a caçada, este homem de hábitos
prosaicos, irredutível em sua colossal macheza, tenha conseguido se surpreender
com uma cena extremamente corriqueira na natureza, quando os veados se
encontram em época de reprodução: Os machos têm inúmeras, repetidas e vigorosas
relações sexuais entre si. Isto acontece porque, no período dos cios, os veados
machos produzem muito líquido seminal. E, como não são todos que conseguem
acasalar, eles se livram do sêmen acumulado nos testículos montando uns sobre
os outros, a fim de aliviar a carga de esperma. Acontece que, mesmo após o
coito, muitos machos acabam criando laços afetivos e convivendo como um casal.
Somando isso aos trejeitos delicados e graciosos do animal, o apelido foi
vinculado à imagem do homem gay.
Imagine quantos pensamentos devem
ter passado na conservadora e e perversa mente de nosso viril caçador que, a
fim de restabelecer a ordem natural das coisas, deve ter se especializado em
caçar veados machos que praticassem sexo com outros de mesmo gênero. Quem sabe
a prática tenha ganhado adeptos, deixado as florestas e chegado não só às
pequenas e distantes cidades do interior, pois também os grandes centros ― que,
pensava-se, eram povoados apenas por homens de mente aberta e pouco inclinados
à caça predatória ― desenvolveram gosto pelo hediondo esporte.
No meio deste processo de
injustificável carnificina, o veado antropomorfizou-se, mas não adquiriu os
direitos reservados a todos os seres humanos. Como seus colegas selvagens, o
veado humano só pode existir até segunda ordem. Todavia, em desacordo com a
regra que limita a matança dos veados quadrúpedes, para os bípedes não há
temporada em que sua caça seja proibida. Quando não são assassinados à custa de
armas ou espancamentos, abatem-nos com o gesto doloroso, com a palavra
agressiva e contumaz.
Não somos veados. A palavra não nos
agride, é um belo animal, mas não somos veados. Ninguém pode usar da mesma
arbitrariedade sobre nossas vidas com a qual caçadores conduzem o covarde abate
destes animais.
Por todo o mundo, aquele que
persegue e agride impiedosamente outro ser humano, muitas vezes é chamado de
“animal”. Errado. Animais não matam por capricho, ignorância ou diversão. Tirar
a vida de alguém ― ou privar uma pessoa de sua liberdade de ser ― é uma atitude
essencialmente humana. Onde houver segregação, atrocidades, ou gestos de
covardia, não se enganem, lá haverá não um animal, mas um homem. Seja ele veado
ou não.
Emerson Braga
1 comentários:
Ferino, irônico, informativo. E com um final que diz o que tem a dizer. O único animal que segregam que mata por prazer e que ofende de propósito é o animal racional, que é o homem.
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