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segunda-feira, 4 de maio de 2015

RESENHA: A segunda pátria, de Miguel Sanches Neto

A chamada história alternativa é sempre vista como uma opção bastante perigosa para os escritores. É que os riscos assumidos são muito altos, a começar pelo desafio de se criar algo que seja ao menos crível, sob pena de cair no ridículo. 

O mais conhecido romance desta linha é The Man in the High Castle, onde Philip Dick mata Roosevelt em 1933, o país afunda na Grande Depressão e imagina um mundo dividido entre alemães e japoneses. Os Estados Unidos são retalhados em diversos estados fantoches; a maior parte do Brasil entra na esfera japonesa.

Mais recente, um livro realmente bom foi Complô contra a América, de Philip Roth: e se Roosevelt perdesse a eleição? E se, em seu lugar, o presidente fosse Charles Lindbergh, notório simpatizante? Roth elabora um poderoso romance, consegue criar uma atmosfera opressora e ao mesmo tempo verossímil - e talvez por isso mesmo assustadora. Em 1941, Lindbergh assina um pacto de não agressão com a Alemanha e o Japão, Ribbentrop é recepcionado na Casa Branca e os judeus americanos são submetidos a um "programa de reassentamento" carinhosamente chamado Gente como a Gente (hum... tem nome de programa do governo federal daqui), levando-os a viver nos confins do país para aprender o modo de vida do "verdadeiro americano". Mas Roth faz a retomada e, em 1942, faz com que o avião de Lindbergh desapareça sem vestígios. Roosevelt acaba retornando ao poder e a História o seu rumo.

E no Brasil? O tema da Segunda Guerra é estranhamente negligenciado entre nossos romancistas, salvo as honrosas exceções. História alternativa, então, nem pensar... O que teria acontecido na hipótese de Getúlio Vargas ter aderido formalmente ao Eixo? Como seria a nova vida dos judeus e, principalmente (levando em consideração o contexto nacional e o tamanho das populações por aqui) dos negros? 

É isso que Miguel Sanches Neto tenta, com sucesso, em A segunda pátria (Intrínseca, 2015). De fato, Vargas pendeu por muitos anos entre Aliados e Eixo, e a partir de 1937, com o Estado Novo, a balança parecia estar decididamente favorável aos alemães. Seguramente, uma parcela significativa da população do Sul, abrangendo as colônias alemães e, em menor escala, italianas, via com esperança o avanço de Hitler. As teorias de eugenia e purificação de raças eram bastante populares - e não apenas na região Sul ou entre os nazistas, é bom que se diga. No romance, um acordo entre Vargas e Hitler entrega o Sul aos alemães, que passam a atuar como uma nação independente do Rio de Janeiro.

A partir daí, o autor avança: identifica sua grande vítima - os negros que viviam nos sudetos subtropicais, ainda que não ignore o fato de que os judeus não durariam muito por lá. Mas os negros eram efetivamente a "grande minoria". Miguel Sanches Neto, por sua vez, explora o fato de que a escravidão brasileira era ainda recente, mal tinha completado cinquenta anos de abolição. A memória ainda estava bastante presente.

Os personagens vão muito bem: Hertha é a fêmea ariana por definição, que deve reproduzir alemães na nova terra. É tão escorregadia quanto Vargas; vive entre os alemães nazistas e os brasileiros. E temos, ainda, Adolfo (sim) Ventura, um negro afilhado de alemão e que domina o idioma. Sente-se conterrâneo de Goethe, mas descobre que nada disso importa. Sentindo-se tão alemão quanto Victor Klemperer, o professor judeu convertido ao luteranismo e condecorado na Primeira Guerra, tem destino semelhante: os alemães decidem quem é alemão. Os Diários de Klemperer foram uma fonte importante para Miguel. No momento mais intenso do livro, Ventura perde sua amada biblioteca - como diziam os alemães, o que um negro faria com tanto livro em alemão?

Como Roth, Miguel faz as coisas retomarem seu rumo. Nesse momento aparecem os personagens reais: Osvaldo Aranha, Getúlio e Gregório Fortunato. A solução que o autor cria também mostra, de certa forma, a divisão que havia no governo entre os pró-fascistas e os favoráveis ao alinhamento com os Aliados. Talvez Miguel Sanches Neto pudesse ter explorado um pouco mais os conflitos palacianos. Essa reentrada no mundo real é sempre arriscada, mas A segunda pátria faz um pouso seguro,

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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
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