Parecia
que a ferida em sua perna estivera ali desde sempre. Deitada em uma rede que
exalava bálsamos mortuários ― a morte naquela casa cheirava à sopa rala, mofo e
aviltantes excrementos ―, dona Josefa aguardava, um pouco menos ansiosa que
seus filhos e netos, pelo próprio passamento.
Já
não espantavam as moscas que orbitavam a chaga aberta, feito o olho de um
antigo cadáver que insiste em enxergar as boas-novas do mundo dos vivos. A
matriarca havia deixado de ser digna do respeito e afeto dos seus,
transmudara-se em uma desagradável e malcheirosa carcaça que atravancava a vida
de todos ao redor, contaminados pelos agouros e predições maléficas que
antecedem o último suspiro daqueles que já viveram mais do que a vida exige.
Acordavam
antes dos galos a fim de constatarem se o peso moribundo que carregavam lhes
presentearia em uma manhã qualquer com a prometida quietude que apenas o
falecimento seria capaz de proporcionar. Rispidamente, abriam um dos olhos da
velha, tocavam sua pele engelhada com as receosas costas da mão e observavam
seu magro abdome, desejosos de que os fracos pulmões houvessem se afogado em
senis líquidos.
Mas
tudo em dona Josefa, estranhamente, permanecia.
―
Morreu não ― dizia com enfado o averiguador do dia, cargo fúnebre que os filhos
mais velhos haviam contraído desde que a mãe deitara-se naquela rede e não
levantara mais. Carrascos sem cutelo, cuidavam dela rançosos, envergonhados da
sincera vontade de ver morta aquela que lhes deu vida.
A
criançada já não era mais repreendida quando embarafustava casa adentro aos
gritos e gargalhadas. Endiabrados, os netos agarravam-se aos punhos da rede, onde
a avó agonizava em profunda letargia, e fingiam-se macacos. Entendiam eles o
quanto a morte é coisa simples, apesar da parcimônia com a qual os adultos
debatiam o tema.
O
tempo transformara dona Josefa em uma peça carcomida de mobiliário. Não rezavam
mais por sua melhora, mas por seu cessamento. Era um incômodo tê-la disposta na
sala de casa a definhar diante do olhar de todos, como um relógio velho,
máquina gasta e incapaz de receber mais corda.
Se
ao menos ela não evacuasse, se parasse de obrar, talvez o inconveniente não
fosse tão flagrante. Há meses não esboçava um único gemido e mal remexia o saco
de ossos no qual se tornara. Nada reclamava ou solicitava, não reagia ao
próprio sofrimento. Todavia, acabara por cometer a maior de todas as
inconveniências: demorava-se.
À
noite, todos se recolhiam às suas dormidas esperançosos de que, antes do raiar
da alvorada encontrariam ― posto que os mortos não mijam ― enxuta a rede da
teimosa anciã.
Imersa
no silêncio moribundo da sala, dona Josefa sonhava um repetido e teimoso sonho.
Por mais que a debilidade a consumisse, a mesmíssima cena onírica revolvia-se
em sua mente como um rolo de filme que se reinicia no infinito.
Em
seu sonho, era ela tal a cabrocha de ancas duras que fora nos áureos tempos de
sua juventude. Encontrava-se à beira de um rio, cantarolando e batendo contra
as pedras uma camisola que cheirava a sabão de coco. Seu finado Edilberto,
também remoçado, acenava para ela da outra margem.
―
Num posso travessiar, Dilberto ― queixava-se ― Num posso. Quem é que há de
cuidar dos menino? Me espere só um cadinho mais, meu véio... Só um cadinho
mais.
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