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quinta-feira, 28 de maio de 2015

PELEJA DE DONA JOSEFA


Parecia que a ferida em sua perna estivera ali desde sempre. Deitada em uma rede que exalava bálsamos mortuários ― a morte naquela casa cheirava à sopa rala, mofo e aviltantes excrementos ―, dona Josefa aguardava, um pouco menos ansiosa que seus filhos e netos, pelo próprio passamento.

Já não espantavam as moscas que orbitavam a chaga aberta, feito o olho de um antigo cadáver que insiste em enxergar as boas-novas do mundo dos vivos. A matriarca havia deixado de ser digna do respeito e afeto dos seus, transmudara-se em uma desagradável e malcheirosa carcaça que atravancava a vida de todos ao redor, contaminados pelos agouros e predições maléficas que antecedem o último suspiro daqueles que já viveram mais do que a vida exige.

Acordavam antes dos galos a fim de constatarem se o peso moribundo que carregavam lhes presentearia em uma manhã qualquer com a prometida quietude que apenas o falecimento seria capaz de proporcionar. Rispidamente, abriam um dos olhos da velha, tocavam sua pele engelhada com as receosas costas da mão e observavam seu magro abdome, desejosos de que os fracos pulmões houvessem se afogado em senis líquidos.

Mas tudo em dona Josefa, estranhamente, permanecia.

― Morreu não ― dizia com enfado o averiguador do dia, cargo fúnebre que os filhos mais velhos haviam contraído desde que a mãe deitara-se naquela rede e não levantara mais. Carrascos sem cutelo, cuidavam dela rançosos, envergonhados da sincera vontade de ver morta aquela que lhes deu vida.

A criançada já não era mais repreendida quando embarafustava casa adentro aos gritos e gargalhadas. Endiabrados, os netos agarravam-se aos punhos da rede, onde a avó agonizava em profunda letargia, e fingiam-se macacos. Entendiam eles o quanto a morte é coisa simples, apesar da parcimônia com a qual os adultos debatiam o tema.

O tempo transformara dona Josefa em uma peça carcomida de mobiliário. Não rezavam mais por sua melhora, mas por seu cessamento. Era um incômodo tê-la disposta na sala de casa a definhar diante do olhar de todos, como um relógio velho, máquina gasta e incapaz de receber mais corda.

Se ao menos ela não evacuasse, se parasse de obrar, talvez o inconveniente não fosse tão flagrante. Há meses não esboçava um único gemido e mal remexia o saco de ossos no qual se tornara. Nada reclamava ou solicitava, não reagia ao próprio sofrimento. Todavia, acabara por cometer a maior de todas as inconveniências: demorava-se.     
  
À noite, todos se recolhiam às suas dormidas esperançosos de que, antes do raiar da alvorada encontrariam ― posto que os mortos não mijam ― enxuta a rede da teimosa anciã.

Imersa no silêncio moribundo da sala, dona Josefa sonhava um repetido e teimoso sonho. Por mais que a debilidade a consumisse, a mesmíssima cena onírica revolvia-se em sua mente como um rolo de filme que se reinicia no infinito.

Em seu sonho, era ela tal a cabrocha de ancas duras que fora nos áureos tempos de sua juventude. Encontrava-se à beira de um rio, cantarolando e batendo contra as pedras uma camisola que cheirava a sabão de coco. Seu finado Edilberto, também remoçado, acenava para ela da outra margem.


― Num posso travessiar, Dilberto ― queixava-se ― Num posso. Quem é que há de cuidar dos menino? Me espere só um cadinho mais, meu véio... Só um cadinho mais.

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