O
rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na
floresta de Gamywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e
pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda
não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme
doze-hastes, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz
levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:
─ Que
prémio me dareis, se o atingir? ─ inquire Guloz, sobranceiro.
O
rei semicerra os olhos e avalia a distância: “Impossível!”
─ O
que me pedirdes! ─ declara o rei, categórico.
O
senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo.
Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como
nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal.
Surpreendentemente, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.
Levanta-se
um coro de regozijo na comitiva. O cavaleiro Potranc está
apreensivo. O rei grita:
─ Hurrah!
Que bela
peça vamos
ter hoje para a ceia. Felicitações, sire!
Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei
não volta atrás!
Guloz
olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.
─ Quero
a rainha Florence.
Um
rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se,
belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e
impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos
das espadas. A rainha intervém:
─ Sires,
mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu
irei com sir
Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em
desafio justo.
Guloz,
seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha
Florence.
Potranc
diz ao rei:
─ Vós,
pela vossa palavra, nada podeis fazer, mas eu, que não aceito a
perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.
O
fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover.
Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao
fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos
homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para
vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o
obstáculo, sãos e salvos.
Logo
à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda.
Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desembainha a espada e
investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro
ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à
direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se
desequilibra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa
atordoado.
Potranc
não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma
bifurcação. Há sinais de cascos em ambos os caminhos. Vê um monge
que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:
─ Meu
padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por
que caminho seguiu.
─ Todos
os caminhos vão dar ao Senhor, mas o do evangelho é mais direto que
o da epístola ─ responde o santo homem.
─ Deixai-vos
de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes ─
riposta Potranc de mau humor. ─ Indicai-mo sem demora!
─ À
vossa direita, sire
─ diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode
ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.
Potranc
retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e
esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tomba e morre. O
cavaleiro prossegue a pé.
Num
troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com
um enorme javali. O animal, ou porque está a defender o território
ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de
presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc,
surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga,
mas o cavaleiro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe,
com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de
crânio aberto.
Potranc
prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça
no seu carro puxado por uma mula.
─ Para
onde vais, almocreve? ─ indaga o cavaleiro apeado.
─ Para
o castelo do rei Justin. Se quiserdes, posso levar-vos ─ responde o
carregador, solícito.
Potranc
não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco
nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao
castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.
Potranc,
informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita.
Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio,
pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence,
em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá
chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta.
De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria,
arremete de espada em riste contra os sequazes de Guloz. Tinem os
ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz assoma, a ver
o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de
cabelos em desalinho.
─ Minha
senhora, morrerei, se tal for preciso, para vos salvar ─ grita o
cavaleiro, entre duas espadeiradas.
Guloz,
com um gesto, manda parar o combate.
─ Que
quereis daqui, cavaleiro?
─ A
minha senhora, que vós, maliciosamente, usurpastes ─ responde
Potranc enraivecido.
─ Vistes
bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta
leal.
─ Aposta,
sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não
se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não
tendes nobreza.
─ Já
que quereis tanto bem à vossa senhora, prometo entregar-vo-la se
cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o
javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e
fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espada que
deixei cair ao Lago do visco ─ enumera Guloz com um sorriso
furtivo.
─ Não
vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas ─ riposta Potranc. ─
Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a
vossa própria palavra e criásseis outros obstáculos. Vós sois
matreiro e cobarde!
O
cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços,
quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na
torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:
─ Guloz
tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza,
conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc,
como seu paladino, tem direito a procurar contestar essa condição
que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me
constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm
existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence,
em combate singular?
Ambos
os contendores assentem. Na manhã seguinte, à hora combinada, em
frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se
aglomeram junto ao palanque real, alinham-se os antagonistas. Justin
dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi
distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O
primeiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os
cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez
as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a
espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido.
Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e
recomeçam o combate.
Neste
reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno
peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não
se aproveita da vantagem. Desmonta e prossegue o combate a pé. Guloz
já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os
escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que
assistem mantêm-se silenciosos, mas as damas não conseguem evitar
um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o
defensor da rainha Florence.
De
repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do
ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a
carne. O senescal sangra abundantemente e parece exausto. Finalmente,
cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa,
não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas
por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A
rainha Florence será confiada à proteção de Potranc; Guloz, sem
honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do
seu reino.
Após
uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu
cavalo nobremente ajaezado. Embrenham-se na floresta, de regresso ao
seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai
soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece
mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas,
quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.
De
repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este
assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando
travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não
tenha segredos para a rainha, desta vez, não consegue dominá-lo e
cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cavalo
desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as
árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada
e viajarem muito mais devagar.
Daí
a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por
um forno de
carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas,
e resolvem pernoitar ali. Enganam o estômago com maçãs silvestres
e descansam, como podem ─ Florence no catre do carvoeiro e
Potranc reclinado sobre a sela.
Na
manhã seguinte, quando Potranc acorda, fica amorosamente enlevado
pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados,
cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também, percebe
o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos
alvores da manhã, e renova
a enorme ternura que
desde sempre
sente por este jovem, que se sujeita a tantos perigos por sua causa.
Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mutuamente
afeiçoadas. Nenhum tenta resistir à atração. Os seus lábios
encontram-se e os seus corpos pressionam-se um contra o outro num
paroxismo de desejo há
muito sublimado.
Nesse
momento, o cavalo de Potranc relincha e ambos regressam à sua
realidade.
─ Sei
que me amais tanto quanto
me respeitais ─ sussurra a rainha, enquanto
deposita um beijo
suave na fronte possante de Potranc. ─ Sois o meu mais querido
paladino.
─ Sim,
minha rainha, amo-vos mais do que a tudo na vida, e o meu respeito
por vós só tem paralelo na minha lealdade
ao nosso rei ─ declara Potranc, comovido. ─ Estarei sempre a
vosso lado.
A
emoção toma conta de ambos. Abraçam-se longamente, envoltos no
chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris.
Retemperados,
prosseguem o regresso ao castelo, onde as pessoas que são tudo
nas suas vidas, os esperam inquietas, sem saber que Potranc já
resgatou, galhardamente, a rainha e a traz de volta sã e salva.
Cavalgando a caminho do seu lar, levando a sua senhora na garupa,
Potranc é o cavaleiro mais feliz do mundo.
Joaquim
Bispo
*
* *
(Pastiche
dos
romances
de cavalaria, especialmente
Lancelote
– o Cavaleiro da Carroça,
de Chrétien
de Troyes,
séc. XII.)
4 comentários:
Pois..o conto de hoje desenrolou .se com interesse ...mas o fim ...já achei frouxo---
A propósito eu também sou Bugalho como o henry....
Obrigado pela leitura e pelo comentário, virita.
O amor cortês era assim: muito lisongeador, mas muito respeitador...
Por qualquer razão este conto fez-me recuar à infância e aos contos que a minha avó me contava.
É tão inebriante ouvir contar um conto...ou até como neste caso, lê-lo...
Que boas palavras, Águas! Muito obrigado.
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