Numa visita íntima em presídio — nem privativa nem romântica, rápida e explícita, indigna do amor, imprópria para o prazer —, pegou menino. Fez um barrigão redondo e brilhante, lindo de se ver. Era a segunda criança dela concebida em contexto francamente infecundo.
Quando lhe perguntavam sobre o marido, ela baixava os olhos: — Tá lá ainda.
— Sai quando?
— Depende do juiz.
Carlos assazonara Renilda fora da estação, na despedida da infância dela, quando o alto-relevo dos verdes seios começava a despontar sob a malha fina do uniforme do colégio.
A menina adolesceu mulher incompleta, com sabor prejudicado. Granulou à força, aguada, acuada. O sexo virou costume antes do encanto das mãos dadas, antes do olhar que precede o beijo. E por não saber sequer sonhar, a menina não teve escolha nem fez objeção: cedeu ao absurdo.
Quando aliciou a menina, ele tinha 26. Era homem arrematado, mais vício que virtude, mais rudeza que cortesia. Renilda foi aceitando a relação por medo, inocência, conformismo, falta de escolha (?) e tomou dó de si mesma. Fazia parte do imaginário coletivo: toda mulher estaria segura ao lado de um homem.
Renilda atendia o marido porque ele assim exigia e porque ela não queria culpa. Levava frutas, biscoitos, sabonete e também o próprio corpo — em caso de permissão oficial para as intimidades. Raramente carregava a filha, com receio de que aquela imundície pudesse contaminar a pequena de alguma forma.
Não sei com quem Renilda aprendeu tanto carinho, tanto zelo. Era uma mulher pobre, órfã, condenada a um homem preso, grávida do cafajeste pela segunda vez. Por que tão apta para o amor?
O marido desconfiava dela e lhe cobrava fidelidade, como se Renilda fosse capaz do contrário. E lhe ordenava presença, sem aceitar desculpa. Outro dia, mesmo com o bebê ameaçando romper prematuro, ela foi ao encontro do maldito.
Cada visita à penitenciária significava falta ao trabalho. Prejuízo também para a patroa de Renilda, que dependia de seus serviços domésticos. — Largue esse homem, menina. Traficante não vale nada. Dê-se ao respeito — dizia a chefa. A empregada pedia perdão, compensava as horas não cumpridas e repetia a transgressão trabalhista.
E nasceu Carlos Júnior. Saudável, calminho, fofo da Silva Santos. Renilda sentiu aquela paixão ardida de novo. Um bebê em casa! Mais gastos, mais cansaço, mais problemas, mais pobreza, muito mais amor. O sentimento pela primogênita também ganhou amplitude: a mãe de 24 anos e a filha de 9 passaram a compartilhar a maternidade de Juninho. Cumplicidade que dava gosto! O lar agora estava completo.
Só que a pena foi integralmente cumprida. Carlos voltou a casa para degradar a harmonia da rotina. Não sabia nada de equilíbrio nem de paz familiar. Nem parecia interessado em aprender.
O trabalho aumentou sobremaneira com a chegada do ex-detento. Era mais roupa pra lavar, mais vasilha suja, mais humilhação. E a mulher tinha de se deitar com ele. O tormento das visitas íntimas era revivido cada vez que ele a tocava. Por mais que Carlos se lavasse, mais cheiro xadrez aquele corpo exalava.
O homem retomou rapidinho o serviço. O comércio de drogas continuou descarado, dentro de casa mesmo. Várias vezes, ela viu o marido molestar mulheres viciadas: as coitadas pagavam a droga como podiam. Ela consentia tudo, em silêncio. Não haveria redenção?
Pingou mais dinheiro para o mercado, mas Renilda vivia apavorada, com presságio de morte. Foi demitida do emprego. O temperamento de Júnior mudou rapidinho. O anjo tornou-se agressivo e chorão. Acordava à noite gritando, denso de sonhos ruins e xixi. As notas de Tatiana baixaram por causa de desconcentração e tristeza.
Cinco meses de inferno nível máximo! Saudade de ser mãe solteira. Vontade de ser viúva. Mas a mulher resistia com paciência e serenidade, rezando por possível recondução do marido ao presídio. Faltava só coragem para denunciá-lo à polícia.
Foi quando ela viu, pela fresta da porta, a intensão do olhar de Carlos sobre Tatiana. Nojenta e insuportável intenção! Com saliva de lobo, ele observava a tenra ovelhinha. “Vai violar a filha em breve” — apavorou-se Renilda.
Escondida no banheiro, a mulher chorou. Doeu-lhe a infância arruinada, a frustração da espera, a verdade da própria história e o futuro dos filhos. Pesou-lhe toneladamente o desespero da desgraça.
E assim, mais desprotegida que nunca, apoderou-se de súbita esperança. Que ninguém contradiga a teimosia da vida! Sem que o diabo notasse, aprontou a mala, abriu a cela e partiu com os filhos.
Maria Amélia Elói
terça-feira, 26 de maio de 2015
Liberdade
por Maria Amélia Elói
2 Comentários
2 comentários:
Sua narrativa envolvente, cativante nos trasporta para os sentimentos da personagem. Incrível! Excelente! É sempre um privilégio ler seus escritos. Sou fã!
Obrigada, Marco Aurélio!
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