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sábado, 9 de maio de 2015

Lassidão

Uma separação em três atos

1
Isso não é justo. Não depois de tudo pelo que passamos. Você não pode simplesmente chegar assim e só me comunicar, diz Paula, numa torrente de indignação e perplexidade, fazendo uma pausa necessária para tornar a respirar. Pausa, também, para pensar nas melhores palavras a dizer, uma vez que a mudez de Alexandre a deixa insegura, tateando no escuro os sentimentos escondidos por trás daquele ar indecifrável que nem os anos de namoro e casamento foram capazes de referenciá-la a respeito.

Ele continua a arrumar a mala, como se a decisão tivesse sido tomada de última hora, no calor do momento. Mas, assim como tudo que envolvia seus gestos e suas palavras – ditas ou caladas –, fora algo planejado. Como não tinha coragem para assumir a responsabilidade pelo fim do casamento, fizera com que um mal entendido envolvendo Paula e um amigo próximo dela fosse o estopim para aquela cena.

Eu errei, admito, mas não do jeito que você me julgou, ela fala, de um jeito conciliador. Começava a acreditar que era a culpada. Sem dificuldade, Alexandre havia encontrado fotos da esposa com o tal amigo quando estavam em uma casa noturna, em arquivo fotográfico hospedado no site do estabelecimento. Os fatos de pouco estar presente em casa nos finais de semana, de ter sido avisado por Paula de que ela sairia com os amigos, e de as fotos conterem nada mais do que sorrisos e olhares trocados entre a esposa e o amigo dela, não foram suficientes para amenizar as conjecturas expostas por Alexandre alguns minutos atrás.

Por favor, vamos conversar sobre isso, pede Paula, já com a voz embargada, mas nada o demove. Aquele ar de solene introspecção havia sido ensaiado em frente ao espelho, e agora era seguido à risca. Fecha o zíper e coloca a mala da cama para o chão com alguma dificuldade. Ela, em frente a porta do quarto, tenta interromper sua passagem. Por favor…, consterna-se, tentando delicadamente pôr as mãos sobre o peito de Alexandre, mas desiste e abre espaço ao perceber a obstinação do marido em avançar para a sala.

Antes de abrir a porta para sair, ele se vira e lhe entrega um cartão. Meu advogado vai te procurar, contudo aí tem todos os contatos dele. Gira a maçaneta, tira a chave da porta e a coloca no bolso enquanto segue pelo corredor até o elevador. Para no meio do caminho, se recriminando pelo ato falho – a chave. Deixa a mala e volta alguns passos, sem encarar os olhos de Paula, que está à porta do apartamento, atônita. Enquanto lhe entrega o molho de chaves, a mão dela agarra a sua. Um tremor sutil, seguido de uma sensação gélida, tira Alexandre de sua orquestrada encenação. Pelo lado de Paula, o coração bate mais forte e a respiração fica ofegante.

Após alguns segundos, Alexandre se desvencilha a passos rápidos, pega a mala pelos braços e desce trôpego pela escadaria. Aquilo havia mexido com ele, e a possibilidade de não racionalizar seus sentimentos e deixar-se guiar pela emoção lhe assustava. Ela o observa afastar-se até desaparecer, e a angústia de talvez nunca mais ver-lhe novamente lhe causa uma sensação estranha, como se nada a sua volta fosse reconhecível, ou fizesse sentido, sem a presença dele.


2
Já na rua, Alexandre espera pelo táxi que havia chamado há alguns minutos. Ao mesmo tempo que avista o carro ao longe, no meio do trânsito pesado, ouve, atrás de si, uma voz suplicante. Espera, Alexandre… Espera, por favor. Paula abre o portão do condomínio com tanta força que o porteiro tenta lhe chamar a atenção, mas ela nem percebe. Incomodado, ele torna a olhar para o trânsito, à procura do táxi, mas este permanece parado.

Você não pode me deixar, segura-o pelos ombros, jogando seu corpo contra o dele. Eu já não sei mais viver sem você, sentencia, sentindo seu esquivar, como se ela fosse uma doença contagiosa em busca de sua vítima. Mesmo com esse sinal, e um pequeno grupo de pessoas que começa a prestar atenção no casal, Paula não se incomoda; Alexandre, sim. Você está sendo ridícula, agarra-a pelos braços, chacoalhando-a devagar, como quem acorda alguém de um pesadelo: Odeio esse tipo de cena, ainda mais pública. Levei tudo numa boa até aqui, mas isso é inaceitável, diz, realmente irritado. Solta-a, e ela parece ter acordado do seu devaneio, olhando em volta os rostos perscrutadores. Sabe que passou dos limites, mas lhe faltam opções melhores para tentar fazer-lhe mudar de ideia.

O táxi finalmente chega, e Alexandre coloca sua bagagem no porta-malas. Ao abrir a porta do lado do passageiro, as mãos de Paula agarram sua perna, e ela está ajoelhada debilmente sobre o asfalto, numa posição de como alguém que suplica aos céus, chorando e falando numa linguagem indecifrável. Aquela cena atrai ainda mais olhares e, agora, celulares com câmeras de vídeo, todos a postos para registrar a vida em sua versão mais insólita.

Você não tem autoestima? Vergonha de si mesma por se humilhar dessa forma?, reage Alexandre, puxando a perna com tanta força que faz Paula ficar de quatro. Ele fecha a porta do táxi, mas nada diz ao motorista. Nesse momento, seus sentimentos são dúbios. Não tem tanta certeza se quer deixá-la mesmo ali daquela forma, humilhada, e seguir o caminho traçado, ou se abre a porta, levanta-a e a beija com paixão, como há muito não fazia.

Seu devaneio é interrompido por uma série de batidas no vidro ao seu lado. Paula não desistiu de demovê-lo. O táxi arranca com alguma truculência, fazendo com que Alexandre finalmente perceba a dimensão da atitude que tomou. Espera, eu preciso falar com ela, pede ao motorista, que não tem contemplação: Meu carro é novinho. Eu não vou ficar esperando essa maluca acabar com a lataria, de jeito nenhum! Alexandre ainda a observa pelo espelho retrovisor, correndo no meio da rua, atrapalhando o trânsito, tentando alcançar o carro, sem sucesso. Quando a imagem de Paula começa a desaparecer, de tão pequena, ele se vira no banco, tentando visualizá-la, mas alguém, nesse momento, a retira de lá.

O motorista continua a falar, mas Alexandre, tentando colocar os pensamentos no lugar, nem ouve. Apenas indica o destino. Pega o celular, acessa os contatos, mas não encontra o número de Paula – já o havia excluído. Então começa a digitar o número do telefone, mas para antes de apertar o botão de ligar. Desliga o aparelho e, com alguma dificuldade, rememora o passo a passo executado para conseguir chegar ao final do casamento. Pensa, porém, que talvez tenha ido longe demais. Que levou-a ao limite, e isso, como ela disse em algum momento, não era justo. Deixou, porém, os pensamentos dissolverem-se quando chegou ao aeroporto. Tinha de viajar a trabalho. Depois resolveria a situação, ou então a deixaria como está, tanto fazia.


3
Moça, você precisa de ajuda. Eu vou chamar uma ambulância, ok? Qual o seu nome?, pergunta à Paula, com ar de piedade, o rapaz que ajudara a resgatá-la do meio da rua. Ela, no entanto, não lhe escuta. Continua a chorar, lamentando-se em murmúrios que não se consegue entender. Moça, senta um pouco aqui, o rapaz apontava-lhe o meio-fio. Vou pedir a alguém pra trazer um copo d´água pra você, ele forçava-a delicadamente a abaixar-se, e só então, a partir desse gesto, ela reagiu. Livrou-se das mãos do homem, que ainda tentava ampará-la, e observou em volta, localizando-se. Viu, ainda, a grande quantidade de pessoas que haviam parado para assisti-la, e exaltou-se.

Quê que é? Quê que foi? Vocês não tem mais nada pra fazer das suas vidas, não?, grita, enraivecida. Essa merda toda deixa vocês felizes, hein? Ninguém vai dizer nada, né! Mas agora vocês já podem voltar a se preocupar com a vidinha de merda de vocês, porque o show aqui acabou. Ouviram?, diz Paula, afastando-se. Ao olhar pra trás, porém, e notar que ainda é alvo dos olhares e dos celulares, explode ainda mais: Vão se foder, seus recalcados de merda! Fodam-se todos vocês! Encara o rapaz que tentara ajudá-la: E você me larga, senão eu chamo a polícia e te enquadro por atentado ao pudor, e afasta-se decidida, deixando-o imóvel, sem entender.

Já dentro do apartamento, fecha a porta atrás de si e olha à sua volta. A respiração em descompasso, o sangue latejando nas veias, a raiva corroendo-lhe o bom senso… Avança contra os móveis e os empurra longe, à medida que sua força proporciona tal feito. O tempo perde sentido. Minutos ou segundos depois, ao deixar-se desabar ofegante de joelhos no chão, repleta de marcas rochas nos braços e pernas, cabelos desgrenhados, cai num choro convulsivo, que a consome e a faz deitar-se em posição fetal no meio da sala revirada como um palco de guerra, até que o cansaço torna o sono a única opção viável dali para frente.

Quando acorda, já com a noite deixando a sala em penumbra, amenizando os reflexos da agitação anterior, levanta-se, anda com alguma dificuldade por entre os móveis revirados e acende a luz. Observa toda a bagunça com serenidade, sem deixar-se afetar pelo estado das coisas. Vai até a cozinha e senta-se à mesa. Pega o telefone sem fio sobre a bancada e procura um número na lista de contatos do aparelho. Encontra. Liga. Oi Maria Eduarda, tudo bem?… Sou eu, sim. Escuta, você pode vir amanhã?… Ah, é? É que tá uma baguncinha, e eu tava pensando em te pagar o dobro… Ótimo, às nove então. Beijo!

Puxa o cartão do advogado do bolso e digita os números do telefone. Como esperava, cai na caixa postal. Após o bipe: Doutor Gutemberg, aqui é Paula, esposa, prestes a ser ex, do seu importante cliente Alexandre. Nem preciso citar o sobrenome, tamanha a importância da entidade, diz, irônica, e segue: Quero marcar um horário o quanto antes, para acabarmos logo com essa pendenga. Se possível, que seja tudo extrajudicial, porque não tenho saco nem paciência para olhar mais a cara dele, e, em breve, também a do senhor. Nem o conheço e já o considero da mesma laia do Alexandre. Desculpe pelo juízo de valor, se for o caso. Ela ri. Aguardo sua ligação. Obrigada! Aperta o botão de desligar com força, como se pudesse reproduzir a batida de um telefone comum.

Deixara a ligação para Alexandre por fim. Fica, por alguns bons minutos, com o telefone na mão, olhando-o fixamente, pensando no que dizer. Decide-se por nada falar. Não naquele momento, não no calor dos acontecimentos. Talvez aquilo pudesse, assim como as fotos, ser usado contra ela, isso já havia ficado claro. Coloca o telefone sobre a bancada e deixa a cozinha. Passa pela sala sem observá-la. Vai até o quarto, escuro, e deixa-se cair de costas no meio da cama. Abre os braços e fica assim por um tempo. Estranha quando sua voz sai inesperadamente: Liberdade?



Foto: broken dreams, broken heart, broken relationship, broken key, de Andreas Wieser

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