[do Diário de Joana]
Rio Grande, segunda-feira, 23/3/2015. 15h22. Dia #9 (again).
Cobras, cães, cavalos.
Surpreendentemente, acordei com uma baita disposição. Passei reto
pela portaria. Não havia ninguém lá. Corri de manhã, na Praça
Saraiva. Tá ficando cada vez mais frio – olha a minha cara de
triste :D. Vi uma coisa que me fez ficar o trajeto todo pensando,
tentando encontrar uma metáfora subjacente, uma simbologia oculta. É
sério, tenho ficado de olho nessas coisas.
Tem um cachorrinho que mora bem aqui na frente. Eu e uma outra
vizinha damos comida e água pra ele. Não trago ele pra dentro
porque ele, mesmo sendo de porte médio, é muito grande pra
apartamento. E acho mesmo que ele tá bem vivendo ali fora,
tranquilinho, livre, ao ar livre. Por exemplo: eu não soltaria o
Catatau, porque ele foi criado desde bebê dentro do nosso pátio, lá
em São Gabriel. Fazer isso com um cachorro que nasceu domesticado é
uma puta crueldade. E eu acho que adotar um cachorro adulto que
nasceu na rua, tentar domesticar um bicho que nasceu e cresceu em
liberdade é tão cruel quanto. Tá, eu sei que nisso tem um pouco do
discurso garantista, e talvez a Mônica Freud diria que eu esteja
aplicando pros bichos o que o penso da prisão para os homens, ou o
que eu sinto em sobre os relacionamentos, blablablá. [Aliás, amanhã
é o dia de ir na psi... aiaiai... #medo]. Voltando ao cachorrinho.
Ele cavou um buraco perto de uma das palmeiras há vários dias. Vi
ele dentro do buraco, algumas vezes, em posição fetal. Acho lindo.
A primeira vez que eu vi o Catatau fazendo isso, comentei com a mãe,
dizendo que os cachorros também sentem saudades do ventre materno –
sim, ela entendeu a queixa. Mas a mãe, daquele jeitinho que só ela
tem de ser uma “profissional da desilusão” – outra hora eu
falo mais a respeito – disse “Que nada. Ele faz isso porque,
quando o dia tá muito quente, a terra fica mais fresquinha”.
Preferi continuar achando que era por causa da saudade do útero. Eu
gosto de me iludir.
Hoje, quando saí pra correr, me espantou ver uma coisa: no buraco
que o cachorrinho cavou havia uma cobra morta. Parei pra espiar. Era
uma cobra filhote, eu acho. Medi com a mão; tinha um palmo dos meus
– a palma da minha mão não é grande, mas tenho os dedos longos
(consigo fazer uma spaccata com os dedos; dá uma escala e
meia no teclado, do do até o outro fa). Não sei ver
se uma cobra é ou não é venenosa – ou peçonhenta, sei que não
é a mesma coisa... –, até que ela me pique, ou me morda, enfim,
até que me ataque. Como nunca aconteceu, pra mim, todas são. Não
tenho medo delas, especialmente, mais do que qualquer outro bicho.
Exceção feita aos – écs! tenho nojo até de digitar... –
ratos. E se cobras livram o mundo dos ratos, elas sempre terão em
mim alguém com quem contar.
Lembrei de uma vez que fui correr no campus da FURG, nas
férias. Tem muitos cachorros na FURG. Eles vivem bem lá. São
gordinhos. Eu não participo de nenhum dos grupos que ajuda os
cachorros, porque, pfu..., sabe?, eu sempre me incomodo com grupos
desse tipo. As pessoas começam a ficar meio surtadas quando se
reúnem “em prol de uma causa”. Sou anti-causas. Se acontecesse
uma guerra entre os homens e os bichos, eu ficaria do lado dos ursos,
já diria o meu pai – ele roubou essa do Thoreau, mas eu nunca
disse que sabia disso... Não sei o que seria deles sem a galera que
cuida, mas o fato é que os cães são bem alimentados durante o ano
letivo, contrariando as mensagenzinhas de “Não alimente os cães”
espalhadas pelo campus, especialmente no R.U.. Eu me
preocupava com os bichos nas férias. Sabia que o pessoal do coletivo
minguava terrivelmente nessa época, e era quando eu mais ajudava.
Esse ano comprei dois sacões de ração, e combinei com um dos guris
pra ir levar comida pra eles. Ele mora na Vila Maria, e pra ele
ficava mais fácil. Meio feio isso da minha parte, tenho que
admitir... acho que eu devia ter ido lá mais vezes. Meio que “cumpri
minha obrigação cristã”, e não quis me envolver. Já to pronta
pra uma associação de senhoras burguesas em prol de uma causa
beneficente qualquer. Então, pra compensar, eu ia lá correr duas,
três vezes por semana, entre janeiro e março, e aproveitava pra
fazer uns carinhos e conversar com os cães que estivessem a fim.
Eles não pareciam carentes, na verdade. Aliás, nesse período, eles
pareciam até mais numerosos que durante as aulas. E mais selvagens,
também. Andavam em grupos grandes, e as matilhas meio que brigando
por território. Talvez pela pouca comida. Eu sei lá. Sei que, nas
férias, a FURG era o território dos cachorros.
Outros que andam soltos por lá, pastando e dormindo nos gramados
entre os prédios, são os cavalos. Frequentemente, eles se
desentendem com os cachorros, e estes com aqueles. Uma alcateia
numerosa se forma de repente para disparar as ameaças, arremetendo o
mais das vezes contra um único animal, e não medem esforços para
mostrar que ele não é bem vindo. Ladram, rosnam, tentam mordê-lo,
algo entre furiosos e temerosos. Um cavalo é monstruosamente maior
que qualquer um dos cães. Uma patada bem dada bastaria pra dirimir
qualquer malquerença por parte do canídeo (hehehehehe... o advoguês
voltou com tudo, depois da cartinha...). Acontece que eu nunca vi
nenhum cavalo reagir de outro modo além de se afastar,
silenciosamente. Os cachorros fazem um estardalhaço até que se
cansam. Passado o desentendimento, os cavalos seguem vivendo suas
vidas, sem demonstrar o menor desconforto com a balburdia dos
insatisfeitos, permanecendo dormindo, ora deitados, ora em pé, na
relva verdinha.
É engraçado porque, durante as aulas, também há um monte de
cavalos, coisa que os estudantes de outros estados devem achar muito
bizarro. Eu acho normal, bonito até. Fiz uma cadeira de inglês no
prédio 3 como disciplina complementar, e toda segunda, no mesmo
horário, aparecia um cavalo e ficava a aula toda na janela perto do
quadro. A professora disse que teria que dar um certificado pra ele
também. Todo mundo riu – eu ri porque acho que o cavalinho deve
ter aprendido mais inglês do que alguns dos meus colegas. Vi poucos
cavalos na FURG, entretanto, durante as férias.
Foi num desses dias de verão, passando pela entrada do
estacionamento do Centro de Convivência, que eu vi uma cobra indo na
mesma direção que eu ia. Tomei um baita susto. Pouco tempo antes,
uma guria foi picada por uma jararaca-cruzeira filhote, perto do
laguinho. Eu via ela (a guria, não a cobra...) bem seguido no prédio
6, era bixo (!) da Biologia. Dizem que foi preciso amputar o dedo do
pé da guria, onde a cobra picou. O médico disse à família dela
que aquela espécie de cobra tem um veneno muito potente, e que,
quando são filhotes, não sabem dosar a quantidade do veneno na
mordida: elas injetam na vítima todo o veneno que têm nas presas, o
que faz dos bebês da jararaca um dos bichos mais perigosos que
existem. Achei exagerado, mas, sabe como são os boatos. Em todo o
caso, a guria foi picada de raspão e por isso perdeu um dedo. Se
tivesse sido picada em cheio, teria morrido. Quando vi a cobra aquele
dia que tava correndo, nem quis parar pra ver se se tratava de uma
jararaca, muito menos se era um filhote. Dei um pulo – acho até
que gritei (Shame on you, Joana...) – e continuei o meu
trajeto na calçada do outro lado da rua.
Nesse mesmo dia, perto do ILA, ou seja, perto de onde a guria foi
picada uns meses antes, vi um cachorro mancando, com uma das patas
dianteiras inchada, que ele tentava não encostar no chão. Fiquei
pensando em como ele teria se machucado, ou como o machucaram, enfim.
Podia ter sido numa briga, o que é normal – ele tava sozinho; os
indivíduos solitários das espécies gregárias sempre se dão meio
mal. Mas também poderia ter sido uma cobra. Fiquei cuidando pra ver
onde ele ia. Tranquilamente – mancando, mas parecia estar lidando
bem com aquilo – o cachorro caminhou aos saltinhos até um grande
monte de bosta de cavalo. Pela cor e pela textura, parecia que tinha
acabado de ser depositado ali. Me deu uma puta ânsia de vômito –
ainda me dá, agora, só de recordar. Eu lembro de ter ficado
pensando no motivo, em por que, meu Deus, por que o cachorro se
dispõe a comer cocô de cavalo? Daí se pode tirar mil conclusões.
Ouvi dizer que o soro antiofídico é extraído do sangue dos
cavalos. Ou do sangue daqueles cavalos em que se injeta o veneno do
tipo de cobra que atacou a vítima. Não sei mesmo. Não me consta
que os cavalos sejam imunes ao veneno das cobras, mas eles estão lá,
a serviço do Butantan. Li num continho do Quiroga que os quatis,
sim, são imunes, mas também nunca me interessei de investigar. O
que eu sei, porque eu vi, era que o cachorro manco da FURG tava
comendo o cocô do cavalo. Na hora, eu pensei “Tem que estar numa
merda muito grande, pra fazer isso, no último estágio antes de
morrer”. Se o cavalo tem algum poder mutante de imunidade a
venenos, isso deve deixar rastros no seu cocô. Talvez aquele
cachorro soubesse disso. Talvez, instintivamente, todos os cães
saibam. Ou, porra, talvez aquele cachorro, ou todos os cachorros,
simplesmente gostem de comer cocô de cavalo. Talvez seja nutritivo,
ou (blargh! peraí...) talvez seja até gostoso. Deixei ele continuar
a sua refeição, e respeitei a liberdade que ele tinha. Mas foi
difícil tirar a cena da memória.
Quando voltei pra casa hoje de manhã, depois da corrida e de ter
repassado mentalmente a experiência da fauna universitária durante
as férias, passei de novo perto do buraco que o cachorrinho cavocou
aqui em frente ao condomínio. A carcaça da cobra ainda estava lá.
O autor da obra veio, me abanou o rabo, daquele jeito meio
displicente, de quem cumprimenta um vizinho com cortesia, mas que é
mais por educação. Eu me abaixei pra olhar melhor para a cobra, e
ele ficou pertinho de mim, de olho no que eu poderia fazer com seu
tesouro. Sei lá o que pode ter passado na cabecinha dele. Me
afastei, porque ele podia não entender que eu estava só olhando,
pelo que, acho, ele ficou satisfeito. Fiz um cafuné em sua cabeça e
segui o meu rumo. Ele deve ter tido os motivos dele pra guardar a
cobra (como o outro também devia ter, para comer cocô). No fim das
contas, pode ter sido só pela estética: a pele da cobra caiu muito
bem na decoração do seu quartinho. Muito melhor do que eu, ele
devia saber o que estava fazendo.
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