John Hurt e seu querido diário
4 de abril de 1984. Ontem à noite cineminha. Só filme de guerra. Um muito bom do bombardeio de um navio cheio de refugiados em algum lugar do Mediterrâneo. Público achando muita graça nos tiros dados num gordão que tentava nadar para longe perseguido por um helicóptero. primeiro ele aparecia chafurdando na água como um golfinho, depois já estava todo esburacado e o mar em volta ficou rosa e ele afundou tão de repente que parecia que a água tinha entrado pelos buracos. público urrando de tanto rir quando ele afundou. depois aparecia um bote salva-vidas cheio de crianças com um helicóptero pairando logo acima. tinha uma mulher de meia-idade talvez uma judia sentada na proa com um garoto de uns três anos no colo. garoto chorando de medo e escondendo a cabeça entre os seios dela como se tentasse se enterrar nela e a mulher envolvendo o garoto com os braços e tentando acalmá-lo só que ela mesma estava morta de medo, e o tempo todo cobria o garoto o máximo possível como se achasse que seus braços iam conseguir protegê-lo das balas. aí o helicóptero largou uma bomba de vinte quilos bem no meio deles clarão terrível e o bote virou um monte de gravetos. depois uma tomada sensacional de um braço de criança subindo subindo pelo ar um helicóptero com uma câmera no nariz deve ter acompanhado o braço subindo e muita gente aplaudiu nos assentos do partido mas uma mulher sentada no meio dos proletas de repente começou a criar caso e a gritar que eles não tinham nada que mostrar aquilo não na frente das crianças não deviam não era direito não na frente das crianças não era até que a polícia botou ela botou pra fora acho que não aconteceu nada com ela ninguém dá a mínima para o que os proletas falam típica reação de proleta eles nunca...
Foi num dia 4 de abril que Winston Smith iniciou seu diário, na Oceania, naquela que é provavelmente a mais conhecida distopia. Sim, dela não se escapa, mesmo que você jamais tenha aberto o livro. "Big brother" - o Grande Irmão, que por estas bandas da Oceania (sim, o Brasil pertence a ela em 1984...) é mais associado a temas nada literários. Sua "novilíngua" foi outra grande criação - o que torna o romance, de fato, na grande narrativa distópica já escrita.
Lembrei-me da data porque, nos últimos dias, foi publicado mais um texto sobre a morte do romance (seria ele algo datado, incompatível com o século XXI?). No entanto, também estamos diante de uma explosão adolescente de narrativas distópicas, que chegam às telas quase que simultaneamente às livrarias.
O sucesso atual do gênero surpreenderia Otto Maria Carpeaux, que não apreciava Orwell, nem aquilo que chamava de "literatura de Desespero da Esquerda". Segundo ele, "só se pode esperar que a obra perca, com o tempo, a atualidade para ficar, enfim esquecida". Talvez, para além de uma visão excessivamente crítica do escritor, Carpeaux sofresse de uma visão excessivamente otimista do mundo - e da esquerda.
Orwell é mais conhecido no Brasil pela sua ficção - 1984 e Revolução dos Bichos - mas era também um grande ensaísta e nome cativo (lá fora) e Daniel Piza resmungava que as escolas de jornalismo ignoram sua existência. Ele editou Dentro da Baleia e outros ensaios, publicado pela Companhia das Letras. Num desses textos, Orwell diz:
Quando eu trabalhava num sebo - que, para quem nunca trabalhou num, é muito fácil imaginar como uma espécie de paraíso onde encantadores senhores idosos folheiam livros sem cessar em meio a fólios encadernados em couro de bezerro -, o que mais me impressionava era a raridade de pessoas de fato dadas à leitura. Nossa livraria dispunha de um estoque excepcionalmente interessante, no entanto duvido que dez por cento dos fregueses soubessem distinguir um livro bom de um ruim. Pretensos entendidos em primeiras edições eram bem mais comuns do que amantes da literatura, mas estudantes orientais que pechinchavam livros didáticos baratos eram ainda mais comuns, e mulheres indecisas em busca de presentes de aniversário para sobrinhos eram, de todos, as mais comuns. Muitas das pessoas que nos procuravam eram do tipo que seria inconveniente em qualquer lugar, mas que encontrava oportunidades especiais numa livraria.
Orwell escreveu Memória de Livraria em 1936. Não deixa de ser um alento: se achamos que a falta de interesse em literatura é uma praga do século XXI, ele já o reconhecia ainda antes da Segunda Guerra. Todos os escritores de distopia estavam errados e Orwell já pressentia a verdade. Esse negócio de proibir livros é coisa do passado. Pressupõe sua importância. O autor de 1984 já vislumbrava, em 1936, a verdadeira distopia; a mais cruel de todas: um futuro em que isso não será necessário - será algo como proibir vodca em um mundo de abstêmios.
Lembrei-me da data porque, nos últimos dias, foi publicado mais um texto sobre a morte do romance (seria ele algo datado, incompatível com o século XXI?). No entanto, também estamos diante de uma explosão adolescente de narrativas distópicas, que chegam às telas quase que simultaneamente às livrarias.
O sucesso atual do gênero surpreenderia Otto Maria Carpeaux, que não apreciava Orwell, nem aquilo que chamava de "literatura de Desespero da Esquerda". Segundo ele, "só se pode esperar que a obra perca, com o tempo, a atualidade para ficar, enfim esquecida". Talvez, para além de uma visão excessivamente crítica do escritor, Carpeaux sofresse de uma visão excessivamente otimista do mundo - e da esquerda.
Orwell é mais conhecido no Brasil pela sua ficção - 1984 e Revolução dos Bichos - mas era também um grande ensaísta e nome cativo (lá fora) e Daniel Piza resmungava que as escolas de jornalismo ignoram sua existência. Ele editou Dentro da Baleia e outros ensaios, publicado pela Companhia das Letras. Num desses textos, Orwell diz:
Quando eu trabalhava num sebo - que, para quem nunca trabalhou num, é muito fácil imaginar como uma espécie de paraíso onde encantadores senhores idosos folheiam livros sem cessar em meio a fólios encadernados em couro de bezerro -, o que mais me impressionava era a raridade de pessoas de fato dadas à leitura. Nossa livraria dispunha de um estoque excepcionalmente interessante, no entanto duvido que dez por cento dos fregueses soubessem distinguir um livro bom de um ruim. Pretensos entendidos em primeiras edições eram bem mais comuns do que amantes da literatura, mas estudantes orientais que pechinchavam livros didáticos baratos eram ainda mais comuns, e mulheres indecisas em busca de presentes de aniversário para sobrinhos eram, de todos, as mais comuns. Muitas das pessoas que nos procuravam eram do tipo que seria inconveniente em qualquer lugar, mas que encontrava oportunidades especiais numa livraria.
Orwell escreveu Memória de Livraria em 1936. Não deixa de ser um alento: se achamos que a falta de interesse em literatura é uma praga do século XXI, ele já o reconhecia ainda antes da Segunda Guerra. Todos os escritores de distopia estavam errados e Orwell já pressentia a verdade. Esse negócio de proibir livros é coisa do passado. Pressupõe sua importância. O autor de 1984 já vislumbrava, em 1936, a verdadeira distopia; a mais cruel de todas: um futuro em que isso não será necessário - será algo como proibir vodca em um mundo de abstêmios.
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