O sangue. Esse
delator maldito que navega arrogante por veias e artérias. É o sangue que vai
lhe contar o que ele não quer saber. Quem ele não é; quem ele nunca foi. Que
não é o primogênito de seus pais. Nem o irmão de seus irmãos. As sobrancelhas
grossas como as do pai, o nariz alongado da mãe, o sinal sobre o ombro
esquerdo: coincidências fabricadas à força do afeto. E ele não será o filho de
mais ninguém. Somente um nada sem raízes próprias. Um pastiche.
O sangue
vai mostrar que ele não serve, que não é compatível. Que num minuto é o
provável doador para o seu pai e, no outro, apenas um desconhecido,
uma conta que não fecha. E ele, que nunca se afasta dos fatos, não saberá
o que fazer com os fatos: se confrontará a mãe ainda ali, no hospital precário,
roubando para si uma cena que não é sua; se exigirá com urgência os detalhes da
sua história desviada; se apenas perguntará por quê.
Ele
ainda não sabe que um estopim será aceso. No instante em que a mãe e os irmãos
lhe pedirem que compreenda. Compreender é tudo o que ele não conseguirá. Ao
contrário, será tomado por um deboche furioso. Uma vontade insana de chutar as
portas frágeis da UTI onde o pai está deitado sem saber de nada. E de sacudir
aquele homem que o enganou por tanto tempo. O pai paciente e amigo que o
ensinou a assinar seu nome e sobrenome. E lhe mostrou as letras, os números, os
mapas, os elementos, as constelações. O pai que lhe mostrou a vida por meio de
uma prática respeitosa de atos sem voz. O pai que o levou para nadar, para
andar a cavalo, para navegar no mar que ambos tanto amam. A quem entregou seus
boletins escolares, suas dúvidas, suas discussões adolescentes, suas
broncas com Deus, seus diplomas, suas paixões, seus argumentos. O homem
que, ele ainda não sabe, será, brevemente, um estranho.
Ninguém
devia saber assim, como ele saberá, que foi rejeitado. Por uma mulher quem
nunca chamou de mãe. Que o jogou fora ou o entregou sob um pretexto qualquer;
talvez, por dinheiro. Por um homem a quem nunca chamou de pai. Que sequer o
conheceu ou que provavelmente nem tenha sabido que o fez existir. Ninguém devia
se deparar com a própria história de repente. Não para descobrir que é uma
história oca. Nem desse jeito, por acaso, por causa de um acidente de carro
estúpido. O pai lançado de cabeça no asfalto; a falta de recursos da cidade
pequena; a necessidade de uma transfusão; ele se oferecendo para doar, apesar
da insistência estranha da mãe em lhe dizer que não precisa, que não precisa...
Ele lendo na ficha do pai: sangue tipo A+. E se lembrando de que o sangue da
mãe é O+, e de que o sangue dele é B-. Tudo isso antes que a voz apressada da enfermeira
sentencie que o doador tem que ser da família ou alguém compatível.
Um homem não devia ser lançado assim ao
inferno. Cara ou coroa?, perguntam-lhe as atitudes. Desnorteio; e ele se
reconduz, feto, ao útero de uma narrativa não escrita. Pertencimento; e ele
volta, inteiro, à UTI onde há muito mais que sangue a ser doado. Porque sangue
é uma conta que não fecha.
Ilustração: O Nascimento do Mundo, Salvador Dalí
7 comentários:
Texto emocionante, de uma criatividade incrível. Só mesmo essa escritora fabulosa para fazer palpitar um drama que é tão recorrente e que quase ninguém presta atenção. Pra mim, um drama que se resume nessa construção antológica: "... e ele se reconduz, feto, ao útero de uma narrativa não escrita. Show, Cinthia!!
Muito obrigada, Cecilia!
Fascinante como sempre. Seus contos me deixam totalmente concentrada, desejando que não acabe nunca mais. Parabéns, Cinthia querida.
Sempre implacável, você faz de uma simples doação de sangue o fio do drama de uma existência. Ótimo!
Obrigada, Tati!
Nossa, Cinthia!!! Fiquei muito emocionada! seu conto é impecável! Amei demais!
Obrigada, Maria Silvia! E obrigada Vânia Diniz!
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