O
senhor Torres não é meu pai nem pai da Bia, e adora os mimos de gordura que a
mãe da gente traz da serra onde ele nunca vai pela artrite que o mói desde
muito novo.
Entre
eles tudo começou com os lençóis.
O
senhor Torres um dia terá dito:
Ao
que a mãe da gente lhe terá ripostado que o corpo necessita, em cada noite, de
paisagem em que se acolha, cor com que rejubile na castidade ou na luxuria.
A
mãe da gente convencida de que é por dormir a vida toda em lençóis alvos que o
corpo padece: um alto aqui, uma dor mais além.
E quando
o senhor Torres lhe voltou a falar em lençóis imaculados como se fosse virtude que
depusesse diante da sua viuvez recente, a mãe da gente jurou que lhe havia de
tirar esse modo estranho de dormir enleado em panos brancos.
E, no
entretanto de esperar que o senhor Torres tornasse aqui onde moramos, lugar onde
vinha de modo irregular por causa dumas partilhas enredadas, a mãe da gente foi
contando a vizinhas e amigas: nem ao menos uma renda com joaninhas ou
borboletas, um entremeio de malmequeres. Lençóis lisos e alvos até na dobra que
vira sobre as mantas. Lençóis a federem a lixívia, e nem sinal do que tenha
acontecido dentro deles.
Como
pode alguém descansar de modo tão uniforme, interrogava-se.
E, na
próxima vinda, apressou-se a mostrar ao senhor Torres os benefícios que têm,
para o corpo e para a alma, os lençóis estampados ou as forras de edredão, que
são tudo modos de aninhar os desmandos da vida e também os sonhos.
E a
mãe da gente fê-lo com perícias e desvelos.
Primeiro,
deitou-o em camas forradas de amarelo claro ou azul de céu.
Não
se atreveu, de início, com cores fortes e nem sequer usou o cor-de-rosa, nem
degradés ou esfumados. Apenas lençóis lisos e cores discretas para ir
aclimatando o corpo do senhor Torres.
Só
depois, e já segura de que ele perdera o hábito de, a cada noite, inspecionar o
lençol de cima e o lençol de baixo a ver de manchas, restos de humores, só
depois, ela avançou para os quadradinhos e as pintinhas miúdas.
Levou
nisso o tempo necessário.
Quando
vinha, o senhor Torres chegava pela manhã e partia ao fim da tarde, até ao dia em
que a mãe da gente arriscou deitá-lo num tecido espampanante: bolas da cor do fogo
sobre um fundo negro. Bolas enormes salpicadas de outras mais pequenas num
festim de intensidades de vermelhos.
A
mãe da gente deitou-o e enfrentou o receio de estar abusando.
E foi
nesse dia, a Bia há-de lembrar-se como eu me lembro, que o senhor Torres ficou
para o pequeno-almoço.
O
homem tinha-se habituado a dormir em lençóis de cores.
Mas
foi só com os tecidos de ramagens, que a mãe da gente disse, muito séria: o
senhor Torres vem viver cá para casa.
Era
o início do Inverno e nas forras do edredão eram os verdes de grandes ramos de
hera em fundo azul-escuro.
E seria
a cor do sol-posto salpicada de florinhas violeta e vermelhas e cor de erva
azeda, e seriam as cores de canela e os cinzentos pincelados com tons fortes e
desenhos variados.
A
mãe da gente acomodou o senhor Torres nesses panos e em tantos outros até o homem
jurar nunca ter dormido em leitos forrados de branco.
Que
o senhor Torres esqueceu os seus dormires de antes tanto quanto nunca esquecerá
o sabor das migas de toicinho no jantar de logo à noite.
A
mãe da gente acabou de chegar da serra e ali está com a cabeça mergulhada na
informidade de sacos e outra tralha, erguendo na mão esquerda uma caixa de
plástico, transparente, cheia do que parece uma papa amarelada.
– Opou
– grita, a olhar-nos como que a pedir-nos contas do que nem sabemos, enquanto
desenha no ar um gesto teatral com o braço meio tapado pela ponta dum pano, um
alinhado aos quadrados vermelhos que veio agarrado à caixa.
Lá
na serra tinham-na avisado: leva isso, assim, e chega lá azedo.
Irá
contar-nos de aqui a pouco, e há-de apertar o seu próprio nariz a imitar o senhor
Inácio que é quem mata o porco:
–
Eu, por mim, levava, isso num tachinho de barro e nem tapava.
E
também imitará a voz esganiçada da mulher do senhor Inácio que é quem trata das
carnes e dos enchidos e do resto:
– Um
paninho por cima e chegam lá como se fossem acabadas de fazer.
E a
mãe da gente a dizer como eles, irá parodiar-lhes os gestos.
Será
daqui a pouco.
Contará
o que o senhor Inácio e a mulher lhe teriam dito se lhes tivesse dado ouvidos:
que a comida não respira dentro do plástico, que o ar fica encerrado e com a
ajuda dum calorzinho que sempre acontece apesar de ser inverno, tudo vai
ferventando e, como ainda é muita hora de viagem, quando chega, fede.
–
Assim diriam eles – afirmará a mãe da gente que, ainda mal chegada, ergue um
cantinho da tampa da caixa e, sem que ainda nos conte, a Bia e eu adivinhamos:
azedaram as migas de toicinho que tem por costume trazer para o senhor Torres.
Azedaram,
ou criaram sabores novos, que ao jantar a mãe da gente irá gabar o sabor intenso
com que este ano ficaram as migas de toicinho.
Ou
se terá sido de as ter trazido num tachinho de barro, tapadas com um pano.
– Um
paninho alvo, dirá a mãe da gente servindo mais um prato de migas ao senhor
Torres.
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