Naquela
noite, quando Zidanta ouviu os passos, soube que era o Grande
Ceifeiro que já o procurava. Sempre acreditara que viria assim,
furtivo e impiedoso; só não sabia quando.
Zidanta,
o Grande Rei dos Hititas, o favorito do deus Tarhun, estava velho. Já
não podia encabeçar o temível exército de carros e ir ao Sul
submeter um príncipe sírio ou fazer recuar os Hurritas no Médio
Eufrates. Já raramente visitava alguma das suas rainhas. Mantinha-se
no seu palácio de Hattusa, recebia comissões de comerciantes
assírios, que queriam negociar no seu reino, ou embaixadas de alguma
pequena corte, a reiterar submissão e a pedir proteção contra
inimigos regionais. Nesses dias, sentava-se junto a uma janela,
assistia à entrada das comitivas pela colossal Porta dos Leões e,
depois, assumindo uma postura grave e reservada, esperava-as na sala
do trono, ladeado pelo Grande Escriba e seus funcionários.
Os
passos, já! O velho guerreiro estava reclinado na sua câmara de
dormir, amodorrado, mas de ouvido alerta, quando os ouviu. Eram
suaves e furtivos. Mesmo pouco audíveis, Zidanta percebeu-os, por
entre os outros ruídos de passos da Guarda, que, pausadamente, fazia
a ronda noturna à volta dos aposentos reais. Só um inimigo se
deslocaria assim.
Num
relance, recordou a curta história do seu reino, onde os soberanos
acabavam, muitas vezes, por sucumbir a revoltas, traições e golpes
palacianos, que não poupavam sequer o resto da família. Fora assim
com o rei Mursili, seu tio, massacrado por si e pelo próprio cunhado
Hantili, seu sogro, o qual também veio a ter a mesma sorte: após
vários anos de reinado, morreu às suas mãos, juntamente com o
filho, netos e todos os que podiam ter pretensões ao trono.
Teria
chegado a sua vez? Apurou o ouvido; os passos eram um roçagar ténue,
de origem incerta, escassos e dissimulados. Pareciam os de um só
homem. Estaria dentro da câmara? Manteve-se imóvel, mas de olhos
semicerrados, tentando enxergar alguma sombra que se movesse na
obscuridade do aposento. Pareceu-lhe notar uma alteração de
luminosidade numa coluna junto ao altar do Deus da Tempestade.
Dirigiu um apelo mudo à divindade para que o livrasse desta
provação, como o tinha salvado de tantos outros perigos que vencera
ao longo dos anos.
Não
queria mover-se, para manter o agressor na ilusão de o poder apanhar
desprevenido. Gritar pela Guarda podia não lhe trazer uma ajuda tão
rápida como precisava para salvar a vida; decidiu que se defenderia
sozinho. Zidanta tinha sempre uma acha de bronze à mão. Quando o
atacante se aproximasse, iria ter uma surpresa. Começou a fazer
deslizar o braço direito sobre os panos, lenta e impercetivelmente,
na direção do tamborete junto ao leito, enquanto tentava adivinhar
quem seria o agressor.
Conhecia
bem o seu povo e os membros da sua corte. Qual poderia querê-lo
morto? Talvez o seu cunhado, Huzziya, sempre cheio de mesuras, mas
que não conseguia esconder uma certa perfídia no olhar. Criticava
veladamente o atual estado do país, onde os Gasgas das montanhas
junto ao Mar Negro se estendiam para Sul e ocupavam florestas e
pastagens, e os Hurritas, a Sudeste, já se permitiam fazer incursões
no país e tomar cidades.
Talvez
Zuru, o chefe da Guarda, esse guerreiro do país de Mitani, que
procurara refúgio entre os Hititas. Aparentemente leal, tornara-se
um militar imune às querelas internas do exército hitita, por não
ter ligações de raça com os outros oficiais. Nunca hesitava
perante uma ordem, mas o estado de inquietude do exército, devido à
ausência de campanhas, talvez o tornasse vulnerável a intrigas.
Ultimamente, vislumbrara-lhe uma ou outra crispação no rosto
barbudo.
Seria
Neferhotep, a egípcia rainha segunda, que nunca aceitara a posição
secundária do seu filho na linha de sucessão? Se assim fosse, iria
eliminar também os dois filhos da rainha primeira.
Os
passos macios aproximavam-se. Sentiu-os mais perto. Agora, estava
certo de que alguém se introduzira na câmara real. Era tempo de
agir. A sua mão alcançou o tamborete, tateou, mas nada encontrou. A
lâmina de duplo gume não estava onde a tinha posto. Uma onda gelada
percorreu-lhe o corpo. O seu coração acelerou e batia ruidosamente,
abafando o som dos passos. Teve de fazer um esforço de disciplina
para não ofegar, nem se agitar, o que poderia desencadear o ataque
do intruso. Percebeu uma sombra acocorada no chão, a uns três
passos de distância. Soube então de onde vinha a ameaça. Tinha de
aproveitar essa pequena vantagem.
Num
só movimento de animal acossado, rodou o corpo para a esquerda,
meteu a mão sob a almofada, empunhou a adaga, que sempre o
acompanhava e, de um salto, abateu-se sobre o vulto, cravando-lhe a
ponta da lâmina com quanta força tinha. Bradou então pela Guarda.
Dez homens entraram de rompante na câmara real. À luz dos archotes
que alguns empunhavam, os guardas depararam com um rei lívido a
olhar incrédulo para a tartaruga do palácio, que exibia uma adaga
espetada no alto da carapaça.
Na
noite seguinte, cansado e humilhado, Zidanta deitou-se cedo. Prestes
a adormecer, ainda vislumbrou um brilho fugaz na lâmina do machado,
empunhado pelo seu filho Ammuna, quando se abateu sobre si a zunir e
o decapitou. No meio da névoa de dor e assombro que o envolveu, num
último lampejo de consciência, admirou-se de não ter ouvido passo
algum.
Joaquim
Bispo
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Ilustração
de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
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(Este
conto, sob o título O
Intruso,
foi publicado no número 33 da revista virtual Samizdat, de maio de
2012)
2 comentários:
Fantástica história. Um suspense muito bem construído e um final inesperado. Adorei lê-lo. Apetecia ler mais, soube a pouco, embora tenha consciência de que não se tratava de um romance. Muitos parabéns. Para quando um livro com todos os teus escritos? Um abraço
Obrigado, Portugal. Sabe bem sentir entusiasmo em quem lê.
Publicar em papel é bem mais complicado. Mantenho-me no virtual a divulgar os meus textos por muitas centenas de potenciais leitores. Abraço!
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