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segunda-feira, 9 de março de 2015

Mulheres: histórias que as compõem

                                                                                          Por Fernanda Fatureto

A partir do texto “O risco de ser mulher pela ótica de Alice Munro”, sobre o conto A Ilha de Cortes, escrito por mim para a Samizdat em fevereiro de 2015 – que  integra o livro O amor de uma boa mulher – inicio  uma série de resenhas cujo objetivo é investigar as mulheres protagonistas dos livros da escritora canadense Alice Munro. Fato que faz parte de um desejo pessoal, mas acredito que por meio dessa fixação por sua obra surgirá a possibilidade de dialogar com a narrativa de uma das contistas mais importantes de toda uma geração.

O segundo conto analisado é Ficção do livro Felicidade Demais (Companhia das Letras, 2010). A escritora constrói uma narrativa em que acompanha as transformações na vida de três mulheres. O chamado turning point que faz avançar por caminhos imprevistos as três personagens Joyce; Edie e Christie.

 O conto possui a perspectiva de Joyce, personagem central que conduz a trama. Professora de música do interior do país, casada com Jon, marcineiro – conheceram-se no colégio e ambos nutriam ambições que mais tarde não se cumpriram. Abandonaram o primeiro ano da faculdade e viajaram. Levavam uma vida tranquila até que Jon a troca pela ajudante Edie. No texto, Alice Munro sinaliza a mudança de costumes da época como o divórcio. Edie opõe-se à protagonista por ser uma personagem cuja história é marcada por drogas, uma gravidez não assumida pelo pai, tatuagens. Aí, vemos as muitas vozes do que é o feminino.

“(...) Ela se levantou e se lavou e passou blush no rosto e tomou um café que preparou forte como lodo e vestiu uma de suas roupas novas. Havia comprado blusas transparentes e saias esvoaçantes e brincos decorados com penas coloridas.”. Joyce representa a feminilidade tal qual a conhecemos por meio do estereótipo. Separou-se e mudou de casa. A descrição das roupas novas que usaria contrasta com a aparência forte de Edie.

Com a separação, ocorre a primeira mudança na trajetória da protagonista. A narrativa expõe o desconforto de ser ex-mulher numa sociedade interiorana. “O fato de haver rearranjos entre casais não era propriamente um escândalo, mas isso não queria dizer que não chamasse a atenção.” Em Alice Munro, parece que sempre vemos mulheres em situações com as quais precisam aprender a lidar. Há um questionamento sobre seus papéis diante dos outros. E mostra rompimentos pelos quais passam para obterem um lugar seu diante do mundo (leitor).

A segunda mudança ocorre com o casamento de Joyce, agora com Matt. Segundo casamento com um neuropsicólogo e violinista amador. Agora vive em Vancouver. Não tem filhos: “Ela mesma não tem filhos, embora tenha ex-marido, Jon, que vive no litoral numa cidade mineradora que passa por dias difíceis”. No texto, torna-se evidente a preocupação da personagem central com o relacionamento – ou como este a valida em seu meio social. “Agora ninguém olharia para ela e pensaria que quando ela viera pela primeira vez a Vancouver estava tão sozinha (...)”.

A terceira personagem feminina do conto, Christie, é apresentada como uma figura irritante. Alguém que está na narrativa como um incômodo, na visão de Joyce. Que não se encaixa nos parâmetros estabelecidos pelo narrador. “Vindo de penetra – Joyce achava que ela tinha vindo com alguém – a uma festa na casa de pessoas que ela não conhecia, mas se sentindo no direito de abusar. Por conta da (superficial) alegria deles e sua hospitalidade burguesa. (As pessoas ainda dizem “burguesia”?).”.

Mais tarde, Joyce descobrirá que Christie é escritora. Que está lançando seu primeiro livro de contos. Em A Ilha de Cortes, Alice Munro também narra a vida de uma aspirante à escritora que entra em conflito com a vizinha. Parece que as escritoras de Munro estão à margem da “burguesia”, desempenhando um papel que questiona convenções. Nessa trama, a personagem central lembrará que – talvez – a jovem escritora seja filha da ex-amante de seu primeiro marido, Jon. Christie é filha de Edie e sua ex-aluna na escola de música.

A imprevisibilidade da narrativa acontece quando Joyce decide ir ao lançamento da jovem. Excertos de um conto de Christie se embaralham no texto de Munro, levando novamente ao conto dentro do conto; o que parece característico na obra de Munro. O constrangimento se dá ao notar que agora a jovem escritora não se lembra de Joyce, não há memória possível. “Não há sinal de reconhecimento no rosto da menina. Ela não reconhece Joyce de anos atrás em Rough River ou de duas semanas atrás na festa”.

“Ela se sente seca”, descreve o narrador sobre Joyce. Nesse campo árido, Ficção compõe um livro sobre mulheres que tomam as rédeas das histórias que as compõem.


*Fernanda Fatureto é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá).

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