Mulheres: histórias que as compõem
Por
Fernanda Fatureto
A partir do texto “O risco de ser mulher
pela ótica de Alice Munro”, sobre o conto A
Ilha de Cortes, escrito por mim para a Samizdat em fevereiro de 2015 – que integra o livro O amor de uma boa mulher – inicio
uma série de resenhas cujo objetivo é
investigar as mulheres protagonistas dos livros da escritora canadense Alice
Munro. Fato que faz parte de um desejo pessoal, mas acredito que por meio dessa
fixação por sua obra surgirá a possibilidade de dialogar com a narrativa de uma
das contistas mais importantes de toda uma geração.
O segundo conto analisado é Ficção do livro Felicidade Demais
(Companhia das Letras, 2010). A escritora constrói uma narrativa em que
acompanha as transformações na vida de três mulheres. O chamado turning point
que faz avançar por caminhos imprevistos as três personagens Joyce; Edie e
Christie.
O
conto possui a perspectiva de Joyce, personagem central que conduz a trama. Professora
de música do interior do país, casada com Jon, marcineiro – conheceram-se no
colégio e ambos nutriam ambições que mais tarde não se cumpriram. Abandonaram o
primeiro ano da faculdade e viajaram. Levavam uma vida tranquila até que Jon a
troca pela ajudante Edie. No texto, Alice Munro sinaliza a mudança de costumes
da época como o divórcio. Edie opõe-se à protagonista por ser uma personagem cuja
história é marcada por drogas, uma gravidez não assumida pelo pai, tatuagens.
Aí, vemos as muitas vozes do que é o feminino.
“(...) Ela se levantou e se lavou e
passou blush no rosto e tomou um café que preparou forte como lodo e vestiu uma
de suas roupas novas. Havia comprado blusas transparentes e saias esvoaçantes e
brincos decorados com penas coloridas.”. Joyce representa a feminilidade tal
qual a conhecemos por meio do estereótipo. Separou-se e mudou de casa. A
descrição das roupas novas que usaria contrasta com a aparência forte de Edie.
Com a separação, ocorre a primeira
mudança na trajetória da protagonista. A narrativa expõe o desconforto de ser
ex-mulher numa sociedade interiorana. “O fato de haver rearranjos entre casais
não era propriamente um escândalo, mas isso não queria dizer que não chamasse a
atenção.” Em Alice Munro, parece que sempre vemos mulheres em situações com as
quais precisam aprender a lidar. Há um questionamento sobre seus papéis diante
dos outros. E mostra rompimentos pelos quais passam para obterem um lugar seu
diante do mundo (leitor).
A segunda mudança ocorre com o casamento
de Joyce, agora com Matt. Segundo casamento com um neuropsicólogo e violinista
amador. Agora vive em Vancouver. Não tem filhos: “Ela mesma não tem filhos,
embora tenha ex-marido, Jon, que vive no litoral numa cidade mineradora que
passa por dias difíceis”. No texto, torna-se evidente a preocupação da
personagem central com o relacionamento – ou como este a valida em seu meio
social. “Agora ninguém olharia para ela e pensaria que quando ela viera pela
primeira vez a Vancouver estava tão sozinha (...)”.
A terceira personagem feminina do conto,
Christie, é apresentada como uma figura irritante.
Alguém que está na narrativa como um incômodo, na visão de Joyce. Que não
se encaixa nos parâmetros estabelecidos pelo narrador. “Vindo de penetra –
Joyce achava que ela tinha vindo com alguém – a uma festa na casa de pessoas
que ela não conhecia, mas se sentindo no direito de abusar. Por conta da
(superficial) alegria deles e sua hospitalidade burguesa. (As pessoas ainda
dizem “burguesia”?).”.
Mais tarde, Joyce descobrirá que
Christie é escritora. Que está lançando seu primeiro livro de contos. Em A Ilha de Cortes, Alice Munro também
narra a vida de uma aspirante à escritora que entra em conflito com a vizinha. Parece
que as escritoras de Munro estão à margem da “burguesia”, desempenhando um
papel que questiona convenções. Nessa trama, a personagem central lembrará que –
talvez – a jovem escritora seja filha da ex-amante de seu primeiro marido, Jon.
Christie é filha de Edie e sua ex-aluna na escola de música.
A imprevisibilidade da narrativa
acontece quando Joyce decide ir ao lançamento da jovem. Excertos de um conto de
Christie se embaralham no texto de Munro, levando novamente ao conto dentro do
conto; o que parece característico na obra de Munro. O constrangimento se dá ao
notar que agora a jovem escritora não se lembra de Joyce, não há memória
possível. “Não há sinal de reconhecimento no rosto da menina. Ela não reconhece
Joyce de anos atrás em Rough River ou de duas semanas atrás na festa”.
“Ela se sente seca”, descreve o narrador
sobre Joyce. Nesse campo árido, Ficção compõe
um livro sobre mulheres que tomam as rédeas das histórias que as compõem.
*Fernanda Fatureto é autora do livro de
poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá).
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