– Mas aí acabou sendo uma mão na roda,
porque...
– Como assim, que roda?! Você estava de
carro? – ela interrompeu-o, curiosa.
– Hã? Ah, tá, mão na roda. É só uma
expressão. Uma metáfora, entende? Quer dizer que aconteceu alguma coisa que foi
de grande ajuda para a pessoa. Várias das nossas gírias vêm de metáforas. –
Zé explicava, paciente.
– Ahnnnn. Tudo bem. É que eu não conhecia
essa.
– Pois então, é como eu ‘tava dizendo: aí
tudo ia de vento em popa, quando ele ficou sem o braço direito lá na clínica.
– O quê? Ele perdeu o braço? Popa? Foi acidente
de barco? – perguntou a moça, assustada.
– Deus do céu, Carol, em que mundo você
vive? É maneira de dizer... Sentido figurado.
– Ah, claro, a tal da metáfora... Dá pra explicar
esses dois, pelo menos?
– Claro! Tudo ia muito bem na clínica, mas
ele perdeu o principal funcionário. Abaixo dele, era quem resolvia tudo por lá.
– Ahnnn... Entendi. Nada a ver com vento ou
braço de verdade – murmurou, contrariada.
– Mas o pior de tudo veio quando ele tentou
matar dois coelhos com uma cajadada.
– Para com isso, Zé! Você sabe que eu odeio
violência com animais.
– Que violência, Carol?! Eu ‘tô falando de
atingir dois objetivos de uma só tacada, digo, de uma só vez.
– Dá pra falar Português, poxa? Tá difícil
de te entender assim...
– Isso é Português, Carol. A nata. Aquilo
que só nós, que falamos Português, entendemos. Ou pelo menos deveríamos, né?
Bom, mas eu não vou discutir com você. ‘Tô metendo o pé, porque ‘tô muito
atrasado e quero tirar o meu da reta. Vou lá. Te ligo à noite.
– Meter o pé? Seu o quê? Mas você... – a
mensagem de Carol ficou sem resposta, pois Zé embarcou quase imediatamente no
ônibus parado no sinal.
Carol seguia
pela rua, ainda contrariada com sua incapacidade de perceber metáforas. Por que as pessoas tinham de usar sentido
figurado, em vez de falar claramente?
Suas divagações
linguísticas foram interrompidas pela discussão de um casal que caminhava à sua
frente.
– Vou abrir meu coração com você, Luiza:
cansei de engolir sapos. E olha que sou boa praça. – o rapaz parecia
realmente aborrecido.
– Você me deixou plantada naquele
restaurante. E ainda dei com a cara na porta quando fui à sua casa. Fala a
verdade: não é pra ficar ressabiada?
– Você devia agarrar com unhas e dentes a
chance de ter alguém como eu, mas seu ciúme doentio não deixa. Ficar me
seguindo e dando incerta é um pouco demais. Fica procurando cabelo em casca de ovo.
– Você me deixou com a pulga atrás da
orelha, poxa! Custava ter dito a verdade?
– Que verdade, Luiza?! Eu não menti. Você
tem que dar o braço a torcer. Foi paranoia sua.
Quando o
rapaz falou em torcer o braço da moça, Carol não conteve o murmúrio de espanto,
denunciando a sua indiscrição. O casal olhou pra trás, furioso pela intromissão
da estranha que vinha atrás deles. Carol, que estava prestes a defender a moça,
afastou-se, envergonhada.
Constrangida
com o acontecido, atravessou a rua intempestivamente, sem olhar para os lados.
No hospital,
duas horas mais tarde, Zé entra no quarto e encontra a amiga toda engessada.
– Como é que você sai atravessando daquele
jeito, Carol? Enlouqueceu?! O casal que te trouxe disse que você atravessou sem
olhar.
– Eu não sei. Foi tudo muito rápido. Fiquei
pensando na briga do casal, naquela história de “torcer o braço” e acho que me
distraí e não vi o carro.
– Mas, Carol! Tem que se ligar...– Zé
não acreditava no olhar indagador da moça. –
Olha o que eu trouxe pra você. – ele estendeu um embrulho em sua direção.
– Puxa! Um Dicionário de expressões
idiomáticas. – a moça parecia desapontada. – Nem sabia que isso existia. Valeu, Zé. –
disse a moça, tentando parecer educada, mas deixando o livro de lado.
– Agora você vai ter uns diazinhos de molho
aqui, e pode passar o tempo lendo isso. – o rapaz sorriu.
– Pois é. Ah, Zé, esse aqui é Dr. Victor, o
médico que me atendeu. – a moça estendeu o braço na direção do médico que
entrava.
– Vitoca, é você, camarada?! Quanto tempo!
– Zé abriu um imenso sorriso ao reconhecer o amigo de adolescência. – Virou médico, rapá? A vida dá voltas... Mó
171 no colégio. Adorava cantar de galo. Mas tenho que tirar o chapéu pra você. Parou
bem pra caramba. – disse ele, fazendo uma reverência.
– Aqui eu sou o Doutor Victor, Zé! –
brincou o médico, abraçando o amigo. – E
aí? Sua namorada arrumou sarna pra se coçar. Vai ficar um tempinho por aqui. Mas
o hospital é ótimo: sem querer puxar a brasa pra minha sardinha, posso garantir
que ela está em boas mãos.
– A Carol? Não é minha namorada, não. É uma
amigaça, né, Carol? Fala pelos cotovelos. Mas, quando eu preciso afogar as
mágoas, é ela quem me ouve. Mas me diz:
vamos botar alguma coisa pra dentro? ‘Tô cheio de fome. Carolzinha, você vai
ter que ficar a ver navios.
– Tudo bem, Zé. Eu me distraio aqui com o livro...
– a moça parecia desanimada ao folhear o dicionário.
Ao
retornarem, Zé e o médico conversavam alegremente.
– E aí, Vitoca, ela tá ou não nas últimas?
– Zé não perdia a oportunidade de debochar da amiga.
– Está por um fio. – brincou o médico,
sorrindo para a moça.
– Podem tirar o cavalinho da chuva, que eu não
vou ficar aqui por muito tempo, não: além de não estar com o pé na cova, vou
dar a volta por cima, porque não sou de fazer tempestade em copo d’água. –
a moça piscou de forma maliciosa, lançando um olhar ao livro e depois aos
rapazes, antes de acrescentar: Andei
estudando.
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