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quinta-feira, 12 de março de 2015

Espelhos da alma (crônica)


Uma das coisas que me impressiona na velhice é a opacidade dos olhos.
Olhos sem brilho, não mais ágeis nem especulativos, que traduzem a constatação de que não há mais tempo e de que o tempo que se foi, foi.
Tenho convivido bastante com eles nos últimos anos. Não falo dos meus olhos, pois eles brilham, procuram, especulam, viram e reviram com tudo o que há por aí.  E a velhice ainda demorará um pouquinho a chegar para mim.
Falo dos parentes, dos avós, dos pais.
Minha avó teve um olho de vidro que brilhava mais que o outro. Ela o lavava e polia sob a torneira da pia e − pasmem! – me deixava brincar com ele.
Os olhos de minha mãe não brilham há décadas.  Decerto preciso fazer um parêntese aqui, pois sua velhice começou prematuramente, talvez na minha idade, talvez antes, nem sei mais. Sei é que hoje, embora enxergue bem, eles têm uma aparência leitosa, como uma via láctea sem estrelas, esperando apenas para se fecharem de vez.
Já os olhos de meu tio ainda brilham e brilharam sempre.  Às vezes, até demais. Sabe quando há situações em que deveríamos ocultar nossa felicidade? Seja para consolar um parente em dificuldades, confortar um amigo que se separou, despedir-se de alguém que já se foi? Pois, para ele, tristeza é perda de tempo e velório é festa, reunião da “parentada” que nunca se vê. “Ôpa, você por aqui? Tá bonito, rapaz...” Ele chega a esquecer o motivo pelo qual está numa capela mortuária. É capaz de contar piada e perguntar se não tem salgadinho...
Quanto aos olhos de meu pai, olhos que sempre brilharam embalados por sonhos, pela perspectiva de viagens a Atlântida, a Pasárgada, a Xangrilá, pelo título de embaixador de causas nobres que habitam em sua imaginação, além de não terem mais a superfície cristalina, têm o cristalino nublado.  Opaco. Degeneração da mácula: está perdendo o pouco que lhe resta de visão.
Dizem que os olhos são os espelhos da alma.
E, se realmente são, o que alguns de nós fazemos com ela?   Será que a maltratamos tanto a ponto de não dever mais ser refletida?
Quer a resposta?

Eu também. 

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