Quando
soube que iria à cidade de P* fiquei pensando qual seria seu verdadeiro nome, e
não pude deixar de achar graça naqueles romances do século passado em que um
certo senhor K passava pela aldeia R, nenhum deles devidamente identificado.
Passei muito tempo procurando em mapas os possíveis cenários para esses contos
e romances. Lembrei-me disso enquanto procurava no Google cidades iniciadas por
P e aguardava a confirmação, pelo pessoal do ministério, qual era, afinal, a
cidade onde participaria de uma audiência.
-
Você não está entendendo. A cidade se chama P*. Mais precisamente, “Ponto
Asterisco”.
Naquele
momento, é claro, continuei sem levar isso a sério. Sem dúvida, deveria ser um
fim de mundo e, exatamente por isso, meus colegas estavam se divertindo às
minhas custas.
A
coisa começou a ficar séria quando recebi o formulário do ministério. Lá estava
a indicação do destino: P*. Bom, em parte, minha primeira impressão se
confirmou: a viagem de carro levaria mais de seis horas.
*
Devo
ter sido tragado, no meio do caminho, por alguma falha dimensional, daquelas
que vemos em filmes B; parecia ter chegado a uma pequena e antiga cidade colonial; tão bonita, limpa e conservada que parecia mesmo uma cidade de brinquedo. Até restaurante peruano tinha. Um centro da cidade não muito maior que um jogo da velha – as quatro
ruas continham o fórum, a prefeitura, a igreja, a delegacia de polícia e uma
agência dos correios.
O
hotel era surpreendentemente confortável e movimentado. Lá, havia uma
infinidade de panfletos de propaganda de farmácia e de uma lojinha de roupa e
artesanato. E, claro, todas se referindo à P*...
À
noite, resolvi dar uma volta pela cidade (sic). Tudo muito escuro, o que me fez
tomar uma cautela que em geral não tenho na hora de conhecer novos ares.
*
Na
manhã seguinte, fui ao fórum – para descobrir, já azedo, que a tal audiência
havia sido cancelada. Caminhei então até uma lagoa – sim, era a principal
atração da cidade; uma lagoa grande e bem cuidada. A cinquenta metros, um
boteco, onde parei para tomar um café e acabei encontrando o prefeito, cujo
nome, por favor, serei obrigado a declinar.
Não
me leve a mal, mas qual é exatamente a origem do nome da cidade?,
perguntei-lhe.
A
pergunta soou como uma provocação barata de alguém da cidade grande, o que me
obrigou a contornar a situação, inventando um interesse pela história colonial –
toda a região foi ocupada por paulistas e portugueses no século dezesseis,
ainda que, obviamente, o prédio mais antigo ainda de pé tenha pouco mais de
cinquenta anos.
-
Melhor seria perguntar a origem da nossa falta de nome.
*
Segundo
o prefeito, a cidade sempre foi esquecida pelos Governadores. Uma cidade fora
do mapa e que, ainda hoje, exige o melhor do GPS. De fato, não é fácil encontrá-la. Mesmo na
época dos tropeiros era pouco utilizada. À medida em que a população crescia,
cresciam também os problemas. Sem pavimentação, sem hospital decente (mesmo o
que funciona, indecente, é bem novo). Não tínhamos luz elétrica, os correios
levavam mais tempo para chegar da capital até aqui do que para a Europa.
Nosso
intendente, logo após a saída de Dom Pedro II, teve a brilhante ideia de
alterar o nome do nosso povoado, para Presidente Deodoro, na esperança de que o
velho se sentisse constrangido em deixar cidadãos deodorenses passando fome e
morrendo de ameba. Até certo ponto, foi bem sucedido: Deodoro realmente andou
por estas bandas e estava para assinar um decreto que criava uma estação de
trem aqui, quando foi substituído por Floriano.
Floriano
era inimigo de Deodoro, e fez questão de atrapalhar a vida de todo cidadão
deodorense. Foi então que enfrentamos uma grande revolta popular – maior que
Canudos, mas ninguém dá a mínima para nós. Aqui a coisa foi muito mais agitada
que na Bahia. E o populacho invadiu a prefeitura, linchou o prefeito e um
comitê alterou o nome para Cidade Presidente Floriano.
De
nada adiantou – Floriano nunca esteve aqui. Continuamos esquecidos. Mas quando
o Getúlio amarrou seu cavalo no obelisco no Rio, meu avô teve a ideia de se
transformar em cidadãos getulienses. E fomos, por quinze anos, Presidente
Vargas.
A
esta altura, tínhamos um mínimo. O trem acabou chegando por aqui; uma usina se
instalou aqui perto e resolveu nosso problema de emprego; a água continuou sem
chegar, mas aí seria pedir muito. Mas quando aquele calhorda do Lacerda forçou
o homem a se matar, entramos na mais completa decadência. Soube que ninguém
queria fazer negócios com getulieneses. Tudo fechou. A usina entrou em
crise e mandou mais de cem trabalhadores para a rua, as ruas nunca mais foram consertadas. Isso aqui virou cidade de
filme de faroeste, com tufos de feno rolando pelas ruas poeirentas... Mas meu avô, coitado, já bem velho e alquebrado, foi fuzilado pela turba, ensandecida de raiva e de fome.
*
Foi
meu pai quem resolveu o problema. Ele e meu avô eram comunistas das antigas. Ele estava
naquele grupo que tentou tomar o Catete em 1935 e terminou passando uma
temporada em Moscou. Morreu aqui mesmo, uma verdadeira autoridade – sua palavra
valia muito mais que qualquer decreto de qualquer prefeitinho que se sentou por
aqui depois dele.
Ele
descobriu que a cidade poderia se chamar mesmo P*. Era um sujeito versátil;
mudamos de nome a cada quatro anos. Somos intrinsecamente governistas, está no
nosso sangue.
Desde então, tudo mudou. Há mais de trinta anos viramos comarca, recebemos uma refinaria - que garante a felicidade e o emprego de todos, restaurantes, pousadas, festivais de cinema. Nossa cidade é um verdadeiro bibelô. A rodoviária é imensa - a rigor, nossa cidade toda cabe nela. Só tivemos algum problema nos últimos seis anos, mas com P* também resolvemos o problema de gênero, e nos adaptamos tanto a presidentes como a presidentas.
Que presidente trouxe cada uma dessas maravilhas? Pouco me importa. Pouco importa para todos nós. Para nós, é tudo asterisco.
*
Decididamente, minha estada em P* não me fez muito bem. Assim como o prefeito, comecei a ver nossa história como um bando de asterisco.
1 comentários:
Nosso Mark Twain se ombreando ao mestre. Com pitadas de Machado. E
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